Candymar chega sem pressa. Com jeitinho, se espreme para conseguir um lugar no emaranhado de gente que se junta afoita. Atrás de um carro com a carroceria cheia de marmitas, cerca de 400 pessoas correm e se amontoam antes mesmo de a distribuição dos alimentos começar. Sob um fim de tarde de 30º C, as refeições são distribuídas em marmitas brancas de isopor. Um homem sobe no carro e começar a bradar em uma tentativa desconcertada de organizar e instruir o enredo. Sem muitos resultados.

Alguns são mais audaciosos e chegam a chamar o emaranhado de “la cola”, a fila. De uma certa maneira, é possível ver a tentativa de um alinhamento de mulheres e outro de homens. Seguindo as instruções do senhor erguido sobre o carro, com o pescoço destacando as cordas vocais no esforço de fazer a voz sobressaltar, as discussões só aumentam.

Ainda assim, a entrega das quentinhas começa. Se fossem esperar o tumulto, ninguém comeria. De praxe, ganham a frente mulheres e crianças. Candymar se junta à elas. Quando finalmente se coloca diante dos olhos do coordenador da distribuição, recebe, sob gritos, a negativa. “Aqui não. Você é na fila dos homens”. Candymar ameaça abrir a boca para questionar, mas é interrompida. “Na fila dos homens”, ele repete apontando a direção.

Candymar é uma venezuelana transexual. O homem? Um brasileiro cristão.

Sem poder para questionar, para lá ela se vai. É melhor aceitar. Sem energia de tanta fome, não há sequer forças para se impor. Ao tentar entrar, já se direcionando para o fim da fila, os homens começam a murmurar. Quando Candymar se coloca ali, eles vêm em coro. “Seu lugar não é aqui”, gritam. Dessa vez ela argumenta, mas em voz contida. Explica que só quer pegar comida e que foi impedida pelo brasileiro que lhe mandou para a fila dos homens. A resposta é concisa. “Que não coma então!”

O desconhecimento sobre um direito humano básico – todos tem direitos sem distinção de qualquer raça ou gênero, faz Candymar passar o dia faminta. Sob a lógica de que é pecado ser transexual, mas não é pecado negar comida a um ser humano, as transexuais refugiadas venezuelanas tem seus direitos violados diariamente em Boa Vista.

Alguns brasileiros alheios à crise venezuelana, indagam porque eles próprios não conseguem se organizar entre si. A pergunta é típica de quem desconhece a realidade e do desespero daquele que tem como único objetivo de vida, ao menos naquele instante, acalentar o filho ou a própria fome que se torna latente. 

 

O jeito é sorrir

“Será que se virem essa foto alguém me da uma barraca?” diz com seu jeito acelerado arrancando risada das amigas. É assim que Mafer, 20 anos, enfrenta os dias na praça Simon Bolívar. Rindo da própria condição.

“Ontem se passou de novo. Se estamos na fila das mulheres, elas não reclamam, mas a senhora que organizava a fila não nos deixa ficar lá. Se nos mandam para a fila dos homens, eles se queixam e nos tiram de lá.”

A sina delas é a mesma de outros tantos venezuelanos. Afinal, crise não tem preferência de gênero. Foram três dias caminhando desde a fronteira até Boa Vista.

Lá trabalhavam como cabeleireiras, manicure e até como estilistas. Fabricavam e desenhavam perucas e roupas. Hoje, tudo o que conseguiram construir é um grande lençol emendados a sacos de plástico para fingir que se têm barraca.

Na caminhada em busca de trabalho pela capital roraimense, receberam bolhas nos pés e uns trocados. Na bagagem, poucas roupas, unhas postiças e equipamentos de trabalho. Trouxeram máquina de cortar cabelo, secador, chapinha e escova. Conseguiram um abrigo para guardá-los da chuva enquanto dormem sob panos ou sob as árvores.

Candymar desperta as seis da manhã, sai caminhando e volta para a praça quando os pés pedem arrego. “Vendo unas cositas”. Com os 35 reais com que chegou no Brasil, ela comprou as coisinhas a que se refere. São meias e escovas de cabelo para vender. O lucro foi revertido em pão, salsicha e creme dental.

Mucho Bullying

O nome nada tem de acaso. Foi homenagem ao amigo que morreu. “Agora é uma estrela lá no céu. Que brilha por todo lado. É uma historia muito longa. Era um amigo gay, mas era de má conduta. Eu saía com ele, mas eu tinha minha vida. Estava Envolvido com drogas, o mataram há três anos.” Foi quando decidiu mudar o nome. Deixou de ser Michel para ser Estrella. Hoje, ela tem 23 anos de idade e vive na praça, na companhia de Mafer e Candymar.

Mucho Bullying.” Ela está acostumada com o excesso de bullying e preconceito desde quando vivia no estado de Bolívar, quando foi impedida de entrar em estabelecimentos comerciais e em boates. Acontece que aqui dói mais. O preconceito não lhe priva de entrar em uma balada, mas de se alimentar e conseguir uma barraca para não continuar dormindo no papelão.

Com o trabalho como cabeleireira, conseguiu construir, até a metade, sua própria casa. Mas só ficaram prontos os três quartos que estavam previstos, mais nada. Vendeu a casa sem sala, sem quarto e sem cozinha por 40 milhões de bolívares. Cerca de 1300 reais. Foi com esse dinheiro que chegou até o Brasil. E é com esse dinheiro que sua família se alimenta.

Quando podem, Candymar, Mafer e Estrella, tranquilizam as famílias à espera de notícias do outro lado da linha fronteiriça. Eles só não sabem que o Brasil onde as filhas depositaram esperanças, é um país que ainda utiliza orientação de gênero como critério para decidir quem merece receber ajuda.

 

Jéssica Paula (jessica@agênciaaids.com.br)

 

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