20/03/2018 – 16h34

 

Elas não param de chegar. Algumas já trabalhavam como profissionais do sexo lá na Venezuela. Outras acabaram de descobrir, no próprio corpo, a atividade que agora lhes tira da fome. Quando começaram a entrar no Brasil, atravessando a fronteira por ônibus ou até mesmo à pé, incomodaram. Por toda Boa Vista, de criança a idoso, todos as conhecem. As brasileiras que já dominavam o ramo na cidade, revoltosas com a concorrência, lhes deram novo nome. São conhecidas como “Ochenta”. Por que? Porque as brasileiras cobram cem reais por programa. E as venezuelanas cobram ochenta. Oitenta reais.

Acumulam-se até seis mulheres em uma mesma esquina da rua que fica ao lado do terminal do Caimbé. É de lá que saem as lotações levando brasileiros que têm a fronteira como destino. E é por lá que muitos venezuelanos chegam esperançosos.

É um desafio fazer com que as prostitutas aceitem conversar com qualquer repórter, mesmo sob a promessa de trocar o nome ou não divulgar qualquer tipo de imagem. Em sua maioria, a família não sabe que estão trabalhando com “algo errado” como elas mesmas dizem.

O peso do estigma sobre a profissão agonia. Sem auxílio ou instrução, vêm à convite de amigas que já se instalaram no estado esquecido ao norte do Brasil. Nem elas, nem o governo brasileiro parecem saber, mas estão excessivamente expostas à violência, à doenças e a discriminação. Por isso, Candy, Dulce María e Jenifer concordaram em conversar com a condição de que as câmeras ficassem distantes e fossem usados os “nomes artísticos”.

Elas pensaram que seria mais fácil. “Saí pelas ruas procurando trabalho. Acabei pedindo dinheiro e, depois de dias, comecei a fazer isso”, conta Jenifer que saiu da Venezuela para construir seu “negócio de comida” no Brasil. Uma pequena lanchonete. “Não tenho mais opções. E de algo tenho que sobreviver.” O motivo que as fez cruzar 1524km, durante dois dias em um ônibus sobressalta em suas falas. Todas têm filhos e são categóricas em afirmar que é por eles que estão lá.

Jenifer demonstra a frustração e a ansiedade em um choro que ainda tenta conter. “De que vale estudar se não pode ganhar dinheiro com seu trabalho?”. A ironia parece ser o atestado de refúgio dos venezuelanos. A ex-estudante de enfermagem agora mal consegue se assegurar quanto aos cuidados de saúde com o próprio corpo. Ela se sente impura. Vil. Fraca. “Só quero um trabalho. Um trabalho digno.”

Já Candy trabalha como prostituta há dois anos, desde que vivia em Caracas, capital venezuelana. Ela vê com estranheza o fato de ser perigoso realizar a mesma atividade no Brasil. “Aqui elas passam mais perigo do que na Venezuela, porque lá elas não ficam na rua. Ficam em ‘los locales’. É um lugar apropriado para trabalharmos. Há noites que saio com medo. Hoje saímos de dia porque a noite estava.. como dizem por aqui…? Fraca!”

O valor oficial de cada programa é 80 reais. Mas há brasileiros que oferecem 30, 40 reais e elas acabam aceitando. “Não é muito, mas com esse dinheiro nossos filhos comem por dois ou três dias.” As vezes logram mandar até vultuosos 300 reais para o outro lado da fronteira. “É forte. É difícil. Não gosto de trabalhar assim. Mas, como dizem lá na Venezuela, ‘la necesidad tiene cara de pero’. A necessidade tem cara de cachorro”, diz Candy.

 

“Como se pega isso? Por beijo pega?”

Quando pergunto a elas sobre como se cuidam para não se infectarem com HIV/ aids, a resposta demora a chegar. E chega com uma pergunta:  “Isso aí que você tá falando … pega como? Por beijo?”

Com tamanha falta de informação, o único detentor da confiança das moças é Seu José Oliveira. Um senhor com sorriso falhado de dentes que já foi até investigado pela polícia para saber porque elas o procuram com tanta frequência. O motivo, na verdade, é nobre. Seu José é conselheiro de saúde da cidade e incorporou, em sua pequena biblioteca onde aluga livros a preços simbólicos, um ponto de distribuição de camisinhas.

“Quando elas chegam nos postos de saúde, são discriminadas. Chegam a dizer para elas ‘maninha, leva só três tirinhas, não precisa de mais do que isso’.”  É por isso que elas não perdem tempo cruzando a cidade para receberem poucas caminhas e doses de julgamento. Em tempos de falta de informação, a distância até um ponto de acesso à prevenção é o que separa uma possível epidemia de Infecções Sexualmente Transmissíveis, do controle social eficaz.

A cota mensal de Seu José é de 14 mil preservativos. “Elas não vêm só uma vez. Antigamente, deixávamos em pontos, mas havia pessoas vendendo do outro lado da fronteira.”. Ele é enfático ao afirmar que os interesses políticos das autoridades passam à milhas de distância das necessidades de refugiadas prostitutas. “A aids perdeu o foco aqui. A política atrapalha o desenvolvimento social”, justifica.

 

PEP e PrEP

Elas se queixam da pouca camisinha que conseguem pegar com Seu José (cada uma vem recebendo seis unidades de preservativos) e desconhecem outras formas de prevenção. Em um estado em que o número de imigrantes e profissionais do sexo aumenta expressivamente, a PrEP, a Profilaxia pré-Exposição, ainda é sonho.

A última vez que fizeram exames, foi quando engravidaram. Algumas há 15 anos. “Aqui no Brasil não fiz nada, mas me vacinei na Venezuela”, explica Jenifer satisfeita com tom de quem vem se cuidando muito bem, e há tempos.

Quando falo sobre PEP ,(Profilaxia pós-Exposição), ficam boquiabertas. Essa sim já está disponível em Roraima. Pedem que eu anote em um papel, que é para não esquecerem. Só lhes resta a sorte de encontrarem profissionais que de fato saibam lhes atender.

Por enquanto, quem mais tem feito o uso desse recurso, são profissionais de saúde que manuseiam objetos cortantes e acabam se expondo através de algum acidente. Seu José procura justificativas. “Estamos no fim de tudo. Uma capacitação acaba antes mesmo de chegar aqui. A sociedade civil daqui está de gaiato. É esquecida. Fica difícil brigar sozinho contra o estado. Não fizeram mais nenhum evento com nossa participação”, denuncia. Enquanto esperam por respostas, elas sobrevivem para salvar os filhos. E a saúde passa a ser o menor dos problemas.

 

Jéssica Paula (jessica@agenciaaids.com.br)

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