Jovens em cenários coloridos, sorrindo e dançando de mãos para o alto: na parte superior das peças publicitárias, a palavra “Sífilis” escrita em uma fonte pouco comum para anúncios relacionados à prevenção de doenças. A campanha “Sífilis Não”, lançada pelo Ministério da Saúde para combater a doença sexualmente transmissível, epidêmica no país, causou surpresa por colocar em um formato descontraído um assunto sério — a OMS estima em 357 milhões os novos casos anuais de transmissão da doença e, no Brasil, o ministério calcula que sejam 58,1 casos a cada 100 mil habitantes, crescimento de 2000% em seis anos .

“Sífilis, entre nessa onda!”, disse um usuário do Twitter, que foi acompanhado por outro: “‘SÍFILIS – O MUSICAL’. Sucesso de público e crítica na Broadway e ganhador de 6 Tony Awards agora no Brasil!”. O possível descompasso entre a forma e o conteúdo chamou a atenção do designer Tiago Perrart, de 27 anos, que topou com um banner da campanha exibido em um ponto de ônibus próximo à sua casa, em São Paulo, na quinta-feira.

Dizendo-se intrigado com a mensagem estética apresentada, ele também foi ao Twitter: “Aí sim, pelo cartaz parece que ter sífilis deve ser a maior diversão mesmo”.

“Como designer, achei estranho. Parece um cartaz de balada, com as pessoas dançando, como se fosse um festival de música ou coisa parecida. A estética, o fundo colorido, a fonte cômica, tudo isso, para mim, não combina. Para uma coisa tão séria, deviam ter usado uma imagem mais chocante, algo que alertasse, preocupasse. Que não passasse uma ideia de tranquilidade e descontração”, disse ele.

Com orçamento de R$50 milhões, a campanha “Sífilis Não” é parte de uma ação maior do Ministério da Saúde em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), com o intuito de chamar a atenção para a testagem e o tratamento da doença, além de desenvolvimento científico, seleção de apoiadores de campo e pesquisa no país inteiro, o que soma R$ 200 milhões no total. Cerca de cem municípios farão parte da campanha publicitária, entre capitais e aqueles mais sensíveis à doença, segundo os dados disponíveis sobre sífilis no país. Além dos banners, a campanha publicitária também reúne vídeos e uma web-série em que dúvidas sobre a doença são respondidas.

Viviane Miranda, diretora de atendimento da Fields360, agência de publicidade responsável pelas peças, garante que a campanha foi traçada de acordo com as diretrizes dadas pelo Ministério da Saúde. Também defendeu ser sempre um desafio pensar em ações de utilidade pública. Ela assegura que elas devem passar uma mensagem direta, representada pela utilização dos lembretes ( post-its ) em todo o projeto.

“Cada dia fica mais difícil falar de assuntos de utilidade pública, principalmente com os jovens que estão curtindo a vida. Nossa missão foi nos comunicar com eles de uma forma impactante e de maneira original: antigas abordagens têm surtido efeitos bem mais limitados. Em termos de visibilidade, fomos direto ao ponto, utilizando os lembretes e a ideia de que é preciso se cuidar”, afirma ela.

Populações-chave

Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2016 foram notificados 87.593 casos de sífilis adquirida, 37.436 casos de sífilis em gestantes e 20.474 casos de sífilis congênita – com 185 óbitos entre eles. A resposta rápida à doença, além de uma cultura que promova a testagem e o tratamento a base de antibióticos tem sido uma estratégia vigente pelo governo desde 2017, quando em parceria com a UFRN foi criado o “Projeto de Pesquisa Aplicada para Integração Inteligente Orientada ao Fortalecimento das Redes de Atenção para resposta rápida a Sífilis.”

Como explica Carlos Alberto Oliveira, pesquisador do Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS) da UFRN, que faz parte do projeto, jovens sexualmente ativos são uma das populações-chave no combate à sífilis, da mesma forma que gestantes, uma vez que a doença pode passar de mãe para filho. A forma adotada na comunicação, segundo ele, visa a educação de forma direta e acessível.

“Nosso foco foi em populações-chave, o que também envolve pessoas sexualmente ativas em idade jovem. O intuito é de fato informar as pessoas sobre a gravidade da sífilis ao mesmo tempo em que desenvolvemos uma cultura educacional sobre a doença, de modo que as pessoas saibam que é preciso se tratar. Acho que a campanha dialoga de uma forma fácil, com uma linguagem apropriada para as pessoas”, afirmou Oliveira.

A mesma opinião tem Juliano Lacerda, docente e pesquisador do Doutorado em Estudos da Mídia da UFRN, que faz parte do projeto e do contato com a agência de publicidade responsável pelas peças, a Fields360. Ele ressalta que essa abordagem para a população jovem funciona e que a campanha não se restringe somente a esse público, mas a vários outros.

“Esse material em clima de festas, para os jovens, vai fim de ano até o Carnaval. A campanha não é só composta por isso, no entanto, mas de diversas outras peças publicitárias, com a participação de gestantes, por exemplo. O processo de desfocalização é normal na comunicação, uma vez que as as pessoas recebem de forma diferente cada conteúdo, mas isso não determina o tom geral da campanha”, afirmou ele.

Ainda segundo Juliano, campanhas mais tradicionais com relação à saúde, que “divulgam de forma impositiva” as ações corretas a se tomar em relação a alguma doença, mereciam algum tipo de reformulação.

Crescimento de 2000% nos casos

Relatório de 2017 do Ministério da Saúde sobre a Sífilis mostra que o número de casos no Brasil cresceu exponencialmente desde 2010 em todas as categorias analisadas — sífilis adquirida, sífilis em gestantes e sífilis congênita. Em 2010, os casos em cada uma dessas classificações era de 2,0, 2,4 e 3,5, respectivamente, a cada 100 mil habitantes. Esses números aumentaram para 42,5, 6,8 e 12,4 em 2016 — um aumento de mais de 2000% nos casos de sífilis adquirida, 280% para sífilis em gestantes e 350% na transmissão congênita, o que coloca o país em uma situação de epidemia.

O mote da campanha, “teste, trate e cure”, é uma bandeira já levantada no combate a outras doenças sexualmente transmissíveis, em que o preconceito ainda é fonte de medo e postergações no tratamento, o que incentiva peças de cunho educacional.

Outro pesquisador envolvido no projeto de resposta rápida a sífilis, o coordenador do LAIS Ricardo Valentim chama a atenção para a força que campanhas educativas do tipo possuem.

“Em uma situação assim de saúde pública, com grande aumento na porcentagem de casos de sífilis nos últimos anos, falarmos no assunto e disponibilizarmos informações de testagem e tratamento já é uma grande conquista. Além de tudo, ainda temos muitos casos de sífilis congênita no país e é preciso chamar a atenção para isso”, diz Valentim, que informa que a parceria do Ministério da Saúde com a UFRN se deveu justamente à expertise da instituição, fato confirmado pela pasta.

O professor também lembra que a campanha é apenas parte do projeto, que abarca ações de melhoria da análise de dados, identificação da doença e projetos de pesquisa. Valentim diz ainda que os resultados da campanha publicitária serão analisados de perto por uma equipe especial da UFRN.

“Há um estudo nosso sobre essa estratégia de publicidade e é normal que as críticas possam surgir”, diz ele.

Fonte: O Globo