A segunda reportagem da série ‘Pequenos Arco-Íris’ aborda os desdobramentos da LGBTfobia enraizada ainda na infância ao longo da adolescência

Durante outubro, Mês da Criança, o iG Queer veicula a série “Pequenos Arco-Íris” , distribuída em três reportagens que abordam a importância de desconstruir a cis-heteronormatividade desde a infância, bem como as consequências da LGBTfobia difundida no ambiente escolar e familiar desde cedo a longo prazo. Neste segundo material, chega o momento de sair da infância e analisar os desdobramentos dela, ou seja, quais conflitos atingem os jovens LGBT?

A adolescência é um período naturalmente conturbado, tanto pelo fator hormonal quanto pelos conflitos sociais que podem surgir – entre eles a LGBTfobia. Descobrir-se nessa idade é tão natural quanto se descobrir mais cedo ou mais tarde, afinal não existe idade certa para explorar a própria sexualidade e/ou identidade de gênero. O psicólogo Miguel Bunge destaca que muito do que o jovem vivencia durante a adolescência é fruto do que foi cultivado durante a infância.

“Se desde cedo você ensina uma criança a olhar para um semelhante como um semelhante de fato e respeitar as diferenças, a gente já resolve muitos dos problemas enfrentados pelos adolescentes”, explica. “Primeiro de tudo, precisamos parar de usar o termo ‘opção sexual’, porque sexualidade e identidade de gênero não são uma escolha. Eu já tive uma paciente que era não-binária e gostava de se vestir com roupas estereotipadas como masculinas, mas mesmo assim a mãe dela comprava roupas estereotipadas como femininas. Essa atitude, no fundo, é uma não-aceitação”.

O especialista também traz à tona que a postura da família é muito importante, e que hoje, com cada vez mais formas de disseminar informação, a margem para dar desculpas fica reduzida, especialmente no caso de pessoas que têm acesso às informações e possuem a tecnologia necessária.

“Muito [do preconceito] parte da ignorância, só que a informação está disponível hoje em dia. Os pais que se deparam com filhos LGBT deveriam parar e pesquisar um pouco, bem como a escola deveria exercer o papel de educar os responsáveis pelos alunos também, justamente para ser um espaço que reproduz cultura”.

A também psicóloga Sophia Izumi, por sua vez, reitera que as fases da vida pelas quais o indivíduo passa exigem, acima de tudo, que ele seja devidamente acolhido para que consiga criar consciência coletiva e sentir-se pertencente aos espaços sociais. “A adolescência é um processo muito vulnerável”, pontua. “É o momento de construção de identidade e nós precisamos de um ambiente acolhedor, além de uma série de outros fatores, para o desenvolvimento cíclico e para nos sentirmos amados. Isso tudo leva à construção da autoestima”.

“Muitas vezes a criança ou o adolescente não tem com quem falar sobre [sexualidade e identidade de gênero]”, continua a especialista. “Com a repressão que ele sofre, seja dentro ou fora de casa, ele se anula e se esconde. A sensação de culpa é muito presente, e tudo isso contribui para o sentimento de solidão. O LGBTQIAP+ já percebeu que as pessoas esperam que ela se encaixe em um padrão, e quando a pessoa foge disso é como se ela se tornasse um objeto de estudo. É como se fosse um grande fenômeno. Você sabe que os outros te tratam diferente, então cresce sem saber se impor e sente que não cabe em lugar nenhum”.

Onde estão as juventudes LGBTQ+ e quem as protege?

“Durante o primeiro ano do ensino médio, entre os meus 14 e 15 anos, me apaixonei por uma colega de sala. Não sabia se ficava feliz ou me matava”, recorda Lillian Mendes, mulher lésbica, atualmente de forma mais leve. “Lembro de sempre me sentir atraída por mulheres, mas ignorava. Achava que era um tipo de carinho ou até carência”.

“Eu e essa colega começamos a conversar pela internet”, continua a narrar. “O sentimento foi crescendo. Trocávamos músicas e piadas internas, no falávamos todos os dias. Percebi que os sentimentos eram recíprocos, até que um dia fui dormir na casa dela e tudo tomou uma proporção maior. Eu tinha tanto medo do que sentia que simplesmente me neguei a continuar e fui embora. Eu me puni quando comecei a me descobrir, tentei sair com homens, mas nada me deixava feliz”.

Para Lillian, além da falta de representatividade e debate durante a infância e a adolescência, os ambientes familiar e escolar não contribuíram para que ela passasse por essa fase da vida com maior tranquilidade. “Nunca tive apoio familiar. Fui criada pela minha avó e vi ela expulsar minha tia por se assumir lésbica. Vivi com medo disso. Além disso, estudei em colégio de freira. Todos esses fatores dificultaram muito minha descoberta e aceitação”.

Vivências como a de Lillian não são incomuns. Vinicius Gomes, pessoa não-binária, relata ao iG Queer que se percebeu LGBT cedo, mas que por conta das represálias teve um processo de autoaceitação conturbado. “O processo de descoberta da minha sexualidade sinceramente não foi nada fácil. Desde criança, eu me lembro de sempre ter apresentado características e comportamentos considerados ‘diferentes’ dos outros garotos da minha idade e levou muito tempo para entender que nunca teve nada de errado nisso”, diz.

“Durante um certo tempo, eu tentei ignorar minha sexualidade e me encaixar no padrão que as pessoas consideram correto, porém eu não consegui manter essa aparência por muito tempo, pois estava vivendo uma mentira. Hoje em dia, apesar de ter uma mente mais aberta em relação à minha sexualidade, eu ainda carrego muitos traumas e inseguranças por sofrer com o julgamento das pessoas e até mesmo da família desde muito cedo”.

Levando em conta todas as cicatrizes que a LGBTfobia enraizada e livremente alimentada e reproduzida desde cedo causa, levanta-se o questionamento: de que forma as escolas, por exemplo, podem contribuir no cuidado e preservação destas vidas? Vinicius destaca que já teve debates sobre sexualidade e gênero na escola, mas não foi feito da maneira correta:

“Durante o ensino fundamental, eu sofria muito bullying por ser uma pessoa diferente das outras. Eu lembro que certo dia os professores resolveram separar uma aula para discutir sobre essas questões com os alunos da sala, porém só atrapalharam ao invés de ajudar, pois as informações que eles passaram eram cheias de preconceito e moralidade. Eu acabei acreditando nesse discurso por muito tempo, inclusive”, explica.

A ausência de políticas em prol das vidas LGBT dentro das escolas é um ponto avaliado por Dandara Rudsan, pesquisadora da Iniciativa Negra e mulher trans. De acordo com ela, no caso de crianças e adolescentes, a família e a escola caminham juntas e alimentam simultaneamente os mecanismos de marginalização. “A estrutura da nossa sociedade não foi feita para receber os nossos corpos”, diz. “Nesse espectro de negligência e omissão da violência, o primeiro local onde nos deparamos com a transfobia e a LGBTfobia é na família. Quando a gente consegue sobreviver minimamente a essa violência familiar, aí sim entramos no espaço descolar”.

“O modelo social em que estamos hoje não está disposto para abraçar nossas individualidades. Claro que durante as últimas décadas a comunidade teve vitórias, mas não adianta nada termos direito ao nome social, por exemplo, se a escola continua negligenciando esse fator. Ou seja, temos uma estrutura que não está na ativa para colocar nossos direitos em prática”, pontua.

“Nós não temos hoje no Brasil uma escola menos LGBTfóbica ou menos transfóbica. Nós temos jurisprudência, portarias e resoluções, mas tudo isso pode acabar em uma mudança de Diretoria ou Conselho. Além disso, é muito complicado a gente falar sobre o fim da LGBTfobia nas escolas quando discursos conservadores ainda dizem que debater diversidade influencia as crianças e adolescentes”, discorre a especialista.

Larissa* é uma mulher pansexual que relata ao iG Queer que sofreu maior repressão da família na adolescência justamente quando o ambiente escolar lhe proporcionou maior debate e percepção acerca da luta LGBTQIAP+.

“O colégio em que eu estudei era mais aberto [com pautas LGBT]”, explica. “A minha família me tirou de lá porque comecei a pensar mais livremente. Eles só queriam que eu estudasse e não tivesse contato com nenhum assunto ligado à arte e derivados, por exemplo. No ensino médio, eu pude usar minha voz para lutar, mas só dentro da escola. Eu não me assumi para a minha família, não tenho coragem para isso”.

Gilmaro Nogueira, psicólogo, destaca que a ação das escolas em conjunto com as famílias deve ser de acolhimento e mediação, pois as violências que acometem a comunidade LGBTQIAP+ atingem todos os âmbitos da vida destes indivíduos.

“Ter conhecimento é importante, mas não significa que isso evite que a trajetória das pessoas LGBTs não seja alvo de injúrias, descriminações, violências físicas e psicológicas, então isso precisa ser mediado”, diz. “Por que a escola tem um papel tão importante, ao invés só das famílias? Porque a escola é palco da vivência das diferenças, onde o bullying LGBTfóbico se dá, e é por isso que ela precisa ter polícias de acolhimento”.

“A escola que cala as diferenças promove um ambiente hostil, em que sujeitos são desumanizados, e isso alimenta o sofrimento dos sujeitos. Esses fatores podem cooperar, inclusive, com o suicídio de jovens LGBT”, conclui.

*O nome desta fonte foi alterado para preservar sua identidade.

Fonte: IG Queer