Por volta do almoço, em um dia de 2006, o telefone do laboratório tocou. Era uma colega infectologista, coordenadora de um dos projetos sobre vacina candidata para HIV, do qual nosso centro de pesquisas participava. Dizia que o estudo deveria ser interrompido. Chamado STEP, o estudo convidou voluntários vulneráveis ao HIV para verificar se uma nova vacina, que usava o adenovírus-5 como vetor, poderia prevenir a infecção.

Todos os estudos rigorosos contam com avaliações periódicas de segurança. Uma dessas, ocorrida no dia anterior, por comitê científico independente, notou que a vacina não estava funcionando como se esperava. Alguns dados sugeriam possível aumento de infecção pelo HIV em pessoas vacinadas que já haviam sido naturalmente infectadas pelo adenovírus-5.

Passados 15 anos, dados derivados deste estudo estão sendo usados para acusar vacinas para Covid-19 de causar Aids. Como largamente comentado nesta Folha, trata-se de afirmação absurda que vai além de causar hesitação à vacinação, provocando mais danos em cenário já bastante ocupado pelo negacionismo.

Temos aqui mais um exemplo de como surgem teorias conspiratórias. Uma informação não relacionada, com dados distorcidos, é usada na construção de narrativa sem alicerce em fatos reais. Impressiona a forma sórdida como tais narrativas são criadas, habitualmente, a partir de grupos mal intencionados, sobre um tema de grande relevância. Nesse caso, a pandemia de Covid-19.

O caso da vacina candidata para o HIV, mencionado no início, foi detalhadamente investigado. A teoria mais aceita é que aquela vacina, feita com um vetor de adenovírus-5, estimulava uma resposta imune que seria mais forte em pessoas que já tinham sido expostas ao adenovírus-5, em uma vacina específica para prevenir o HIV.

Muitas outras vacinas em estudo contra outras doenças infecciosas, que usam vetores semelhantes, não reproduziram o mesmo efeito e seguem em investigação e desenvolvimento.

Extrapolar o que se passou com aquele projeto para a vacinação de Covid-19 é atitude absolutamente irresponsável. Mais de seis bilhões de doses de diferentes vacinas já foram aplicadas no mundo.

Além dos rigorosos estudos em fase 1, 2 e 3 —etapas de desenvolvimento clínico que respeitam normas internacionais de boas práticas de pesquisa— é realizado acompanhamento de possíveis efeitos colaterais logo após a implementação da vacina em uma população.

Incontáveis vidas já foram salvas. Muitos lugares estão experimentando aberturas de atividades sociais e econômicas, graças a esse avanço extraordinário da ciência.

Déjà vu de teorias conspiratórias na saúde.

Foi entre 1999 e 2008 que o então governo da África do Sul, sob a presidência de Thabo Mbeki, negou que a Aids era causada pelo HIV. À época, foi influenciado por alguns pesquisadores e médicos, como o virologista Peter Duesberg, que alimentavam tais teorias e negavam as vastas evidências em contrário.

Como resultado, estima-se que mais de 300 mil pessoas morreram de Aids naquele país, principalmente pela recusa às medidas de prevenção e ao tratamento com remédios do coquetel antirretroviral, resultando no aumento da transmissão, inclusive aos filhos de mães infectadas.

Enquanto tentamos identificá-las e coibi-las, teorias conspiratórias continuam contribuindo para o aumento de infecções e mortes pela Covid-19 em medidas difíceis de quantificar. É preciso cobrar responsabilidade de quem as cria e propaga.

Fonte: Folha de S. Paulo