No dia 11 de novembro de 2022, o segurança Luiz Roberto Aparecido de Freitas, 41, esperava a consulta com o cirurgião plástico Guilherme Guardia Mattar, mestre pela Unifesp e especialista em mamoplastia masculinizadora, no ambulatório do Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, na zona oeste de São Paulo. Dali a algumas semanas, ele iria retirar seus seios após quatro anos de tratamento hormonal.

O processo para a retirada das mamas pelo SUS é rigoroso. É preciso, primeiro, que o interessado procure uma UBS para que seja encaminhado aos serviços especializados. Lá, ele passará por um tratamento ambulatorial onde, segundo o Ministério da Saúde, “são realizados o acolhimento e acompanhamento por equipe multiprofissional e multidisciplinar e hormonioterapia”, antes de chegar a cirurgia.

O acolhimento e a realização de sonhos

No consultório longo, quase como um pequeno corredor, em uma tarde de sexta-feira acompanhada pela reportagem de VivaBem, Mattar atendeu seis pacientes ao lado de quatro estudantes de medicina do quinto ano.

Aquela, provavelmente, seria uma das únicas experiências que os alunos teriam com o público transexual na graduação. Por ali, acolhimento é a palavra-chave.

Quando me formei em medicina, há cerca de 10 anos, esse tipo de cirurgia não era comentada. Não tive contato com ela nem na minha residência de cirurgia geral e nem em plástica.
Guilherme Guardia Mattar, médico especialista em mamoplastia masculinizadora

Hoje, ele é preceptor [espécie de guia ou educador de futuros médicos durante a residência] de estudantes de medicina do quinto ano que o acompanham nos procedimentos e aprendem na prática a maneira correta de agir com o público e cirurgicamente.

Recentemente, Mattar operou um paciente de 62 anos. “Ele sofreu preconceito durante toda a vida, teve problemas para se relacionar e se entender. Demorou anos para realizar esse sonho, mas agora está muito satisfeito. Foi incrível conseguir entregar essa liberdade para um paciente nessa idade, já que a maioria está na faixa entre 20 e 30 anos”, conta.

Há também quem tenha feito tatuagem em sua homenagem. “O paciente pediu para eu assinar em um papel e, na consulta seguinte, voltou com a minha assinatura tatuada abaixo da cicatriz da cirurgia. Disse que queria guardar para sempre o dia em que ficou livre e quem tinha o ajudado a realizar esse sonho.”

A história por trás do bisturi

Um dos pacientes do dia foi Juliano Almeida, publicitário de 31 anos. Ele conseguiu fazer a cirurgia há poucos meses, mas estava lutando contra as burocracias há oito anos. Há dois anos, chegou a procurar um médico que fizesse o procedimento de forma particular, mas o preço —o orçamento que recebeu era de R$ 18 mil na época—, fez com que procurasse o SUS.

“Não tinha renda para fazer uma cirurgia naquele valor. Já tinha começado o processo hormonal de forma particular, mas cada consulta custava cerca de R$ 300 a R$ 400 e estava pesado para mim, por isso procurei o SUS”, conta.

Logo em sua primeira consulta com a endocrinologista na rede pública, há quase uma década, Juliano já deixou claro que gostaria de passar pela cirurgia de mamoplastia masculinizadora.

O médico conta que já atendeu pacientes que, assim como Juliano, esperaram até 10 anos para conseguir retirar a mama. A fila de espera do SUS é longa.

“A média é de três a seis anos, mas tem quem espera mais. Pacientes que têm a oportunidade de fazer de forma particular ou pelo convênio não passam por isso. Geralmente, leva em torno de dois a três meses”, explica. Para isso, o paciente precisa de um laudo psicológico ou multidisciplinar, além de realizar os exames pré-cirúrgicos.

Juliano precisou brigar muito e recomeçar o tratamento várias vezes até conseguir o laudo multidisciplinar definitivo para sentar no consultório de um cirurgião plástico. Segundo ele, a troca de médicos do sistema público de atendimento e a mudança frequente das regras atrasaram a chegada do processo ao final.

“Toda hora o processo burocrático mudava e não éramos comunicados. Só nos falavam na hora das consultas. E como não era possível reverter tínhamos que engolir a situação.”

Quando ele recebeu a notícia que conseguiria realizar o procedimento sua pressão até caiu. “Não dormi na semana da cirurgia de tanta ansiedade. Quando deitei na maca lembrei de toda a minha caminhada. Até falei para o doutor Guilherme que não era justo tudo o que eu tinha passado”, conta.

O procedimento tornou possíveis situações simples na vida de Juliano: desde usar camiseta branca até entrar no mar. “Já deixei de ir a praia e acampamento com os amigos por causa da cirurgia. Fui uma vez e precisei ficar de regata neoprene no mar, que aperta mais o tórax.” Sem os seios, ele não precisa mais se preocupar com isso.

Luiz Roberto, aquele lá do começo da reportagem, não esperou tanto. No tratamento hormonal há quatro anos, ele já está um passo mais próximo de conseguir retirar seus seios. Para a consulta, saiu de sua cidade natal no interior do estado, São José do Rio Preto (distante cerca de 440 km da capital paulista), viajou a noite toda, foi direto da rodoviária para o hospital e sairia dali direto para a rodoviária, para enfrentar mais seis horas de viagem.

Luiz, que estava começando a sentir muitas dores no corpo e falta de ar devido ao uso da fita de compreensão nas mamas, foi incentivado por um amigo a fazer o tratamento hormonal.

“Sempre fui muito masculino e usar o banheiro, por exemplo, era uma questão. Em uma viagem para Santa Catarina, antes do tratamento, entrei no sanitário feminino e uma mulher começou a gritar, chamaram o segurança? Foi uma vergonha”, recorda.

Sua esposa não era a favor da sua transição no começo da conversa, mas Luiz acredita que a relação entre os dois melhorou depois do tratamento hormonal. Mas os seios ainda eram um empecilho para que conseguisse viver de forma livre. “Fizemos uma viagem para Maceió ano passado, mas não pude entrar no mar. Um homem barbado com tanto peito, não tinha como.”

“Não sei qual será minha reação na primeira vez que tirar a camisa e estiver sem seios”, disse no fim da consulta daquele dia.

Pouca oferta, muita demanda

Mattar calcula que, nos últimos dois anos, realizou cerca de 120 cirurgias apenas pelo SUS —em julho, ele e sua equipe bateram a marca de 100 procedimentos e comemoraram com um bolo. “Faço quatro cirurgias por semana. Na minha carreira já devo ter realizado mais de 200”, conta. Para ele, a escolha de se especializar no público trans se deu pelo impacto positivo que vê em seus pacientes.

“Faz diferença na vida das pessoas. É um divisor de águas. Muitos vivem constrangidos e sofrem com o preconceito. Depois da retirada das mamas, eles se sentem livres para tirar a camisa em público, realizar atividades físicas ao ar livre? Algo que não conseguiam antes por causa da disforia com as mamas”, explica.

A cirurgia leva cerca de três horas para ser realizada e o paciente pode ter alta no dia seguinte. Diferentemente de uma cirurgia de redução de mama, a mamoplastia masculinizadora reconstrói toda a região do tórax para deixá-la com características masculinas.

“Além de retirar vigorosamente o tecido, também é necessário diminuir a aréola e deixá-la mais lateralizada e inferiorizada, como é padrão no corpo masculino”, explica o médico. “Uma cirurgia redutora ainda deixa o formato e a posição de um seio feminino. Recebo casos de pacientes infelizes com o resultado.”

Por isso o especialista reforça a importância de sempre buscar alguém com experiência.

“No Brasil, ainda há poucos especialistas nesse tipo de cirurgia. E faz diferença realizar esse procedimento com alguém que conhece e tem contato frequente com o público.”

Enquanto o médico acumula altos números no currículo, a contagem do Ministério da Saúde não passa nem perto de ser tão alta. A pedido da reportagem, a assessoria de imprensa do órgão comunicou que de 2019 a 2022 foram realizados 19 procedimentos de mastectomia simples bilateral em homens trans no Brasil.

Fonte: UOL / Viva Bem