Quando saiu do Brasil dois dias antes da Organização Mundial declarar oficialmente a pandemia de Covid-19, João Geraldo Netto não imaginava os percalços que tinha pela frente. Ele viajou para passar cinco meses fora fazendo trabalho voluntário. João é estrategista de marketing digital, especialista em saúde sexual e reprodutiva, ativista de Direitos Humanos, mobilizador social, produtor de conteúdo na estratégia de comunicação em saúde Super Indetectável e Rede Mundial de Pessoas que Vivem com HIV e membro do Instituto Multiverso.
Ficou três dias na Alemanha e partiu para a Polônia. Lá ouviu histórias de que estavam ocorrendo problemas com o vírus surgido na China, que era um vírus respiratório e que a mortalidade dele era maior que os vírus respiratórios normais e só na Itália as coisas estavam bem complexas .
“Nesse um mês que passei na Polônia, eu saía, vivia a vida normalmente, ia a boates, todas cheias, então não havia nenhum indício que aquilo sairia da Itália, onde estava na Europa, e da China, onde surgiu. No meio do mês de fevereiro as coisas já começaram a ficar meio feias, o vírus começou a atingir a Áustria, os países vizinhos da Itália e aí, na minha ida para a Alemanha, no final de fevereiro, começaram as restrições. Tinha que usar máscara em local fechado, tinham começado a suspender algumas festas fechadas, show já não podia mais”, conta João.
Treze dias depois que chegou na Alemanha, as fronteiras foram fechadas, os voos foram suspensos e aí começaram os transtornos. “Eu ia ficar só 30 dias na Alemanha, depois ia para a Grécia e em seguida, Israel, mas Israel foi o primeiro país a fechar fronteiras. Eu não conseguia ir para Israel e o meu voo para o Brasil saía de lá. Então, eu tinha que pensar no que fazer. Já não ia mais para a Grécia, cancelei a passagem, mas tinha que chegar a Israel. À medida que foi piorando a situação, eles cancelaram meu voo de Israel também. Aí, eu consegui transferir o meu voo para Berlim. Só que entre um cancelamento e outro, cinco meses se passaram. Na Europa, então, a situação estava mais controlada. Quando eu cheguei no Brasil e vi o pandemônio que estava, isso me deixou mais ansioso ainda e aí retornei às crises de ansiedade. Aí fui buscar um psiquiatra, ajustar medicamentos.”
Isolamento social
Como trabalha com a internet, o trabalho do João aumentou muito durante a fase de pandemia. As empresas para quem trabalhava e os projetos que desenvolvia migraram para lá. “Como eu já tinha essa experiência, ficou bem pesado pra mim. Foi um trabalho que acumulou demais e isso acabou me gerando mais ansiedade, porque sempre fui muito criterioso com o isolamento social e só saía em caso de extrema necessidade. Eu vivo com a minha mãe e aqui em casa, era uma única pessoa que saía de casa. A gente tentou sempre manter o máximo possível dentro das orientações da OMS para o cuidado mesmo, redução do risco. O que acontece é que eu me mantive dentro de casa, mas não foi fácil. Eu sou uma pessoa muito ativa, acostumada a sair, a andar, a passear, viajar, a ver os amigos, trabalhar fora, viajar pelo trabalho.
Vacinação e HIV
A vacinação foi um dos momentos mais fascinantes e eufóricos da vida de João. E não foi só quando eu me vacinei. Eu acabei me vacinando antes da minha família, em geral, porque eu tenho HIV e isso me colocou na frente da fila. Mas quando meu pai, minha mãe, meus irmãos, namorado se vacinaram, enfim, amigos, isso acabou me trazendo muita felicidade. Eu acredito muito na ciência e eu esperei muito por essa vacina e eu sei que é a única coisa que pode acabar com a pandemia,” ressalta.
Em março, abril do ano passado, ele teve uma situação muito perturbadora quando seu ex-marido, André, teve covid e quase morreu. Homem jovem, 37 anos de idade, ficou internado vários dias, tomando oxigênio, anticoagulante, com falta de ar e só não foi entubado porque não havia na época unidade de saúde com UTI, durante a explosão da variante delta. “Isso trazia muitas angústia, por ele estar assim e isso poder acontecer dentro da minha casa. A vacina veio para trazer mais tranquilidade, uma esperança de retomada do que a gente já viveu um dia.”
João é uma pessoa que lê e se informa, por isso sabe que o risco para as pessoas vivendo com HIV quando se infectam com covid é realmente maior, mesmo com carga viral controlada, sem nenhuma comorbidade e sem apresentar nenhum problema mais grave de saúde. “Isso traz muita angústia também, não só pra mim, para os meus amigos também. Muitos deles vivem com HIV e, às vezes, não têm as mesmas possibilidades que eu tenho, de trabalhar dentro de casa, de me resguardar, de ficar aqui quietinho. Alguns têm que se deslocar para ir para o trabalho, usam transporte público e isso deixa a gente muito aflito, ansioso. Isso acaba piorando ainda mais a nossa saúde mental, de se preocupar não só com a gente, mas com todo mundo que a gente conhece, que está em volta. Saber também das dificuldades das pessoas mais vulnerabilizadas, saber que elas estão ali se submetendo à situações que não precisariam se a gente tivesse uma política pública voltada à prevenção e ao diagnóstico da covid. Infelizmente, essa não é a realidade do nosso país.”
Dois anos de pandemia
O prolongamento da pandemia está sendo muito difícil para João, porque houve um respiro no meio de 2021 para a frente, quando a vacinação começou a se intensificar, muita gente já tomando a segunda dose, fazendo esquema completo de vacinação e, mais tarde, o cenário mudou.
“Em julho, agosto do ano passado eu já fiz planos de viajar, comprei passagens. Em novembro, eu fiz a viagem dentro de uma ideia de que as coisas iriam voltar um pouco mais próximas do normal – porque normal nunca mais vai ser – e quando eu volto para o Brasil no início de dezembro, eu vejo que a ômicron estava vindo avassaladora e acabando com tudo. E não só ela, aí veio uma epidemia de gripe que pegou o Brasil inteiro, me pegou, eu cheguei com essa gripe, não sei se peguei ela lá ou aqui e a gente fica louco. Aí todo mundo se isola, porque quando chegam aqueles sintomas clássicos de gripe, de covid, a gente não sabe o que é e acaba se isolando. Chegou uma hora que a gente teve que procurar médico porque estava muito ruim, fizemos teste de Covid e deu negativo, era gripe.”
Um mês depois disso, a mãe do João começou a se sentir mal. Ela que se resguardou tanto, resolveu fazer um passeio com uma amiga que não estava se cuidando e pegou covid dessa amiga. “Como a gente vive todo mundo junto, vai todo mundo se isolando. Ela teve sintomas, foi diagnosticada. Meu sobrinho teve sintomas, mas não foi diagnosticado por não conseguir fazer o exame. Eu também não fiz porque três semanas antes tinha feito e tinha dado negativo para covid, era gripe. E ficamos todos isolados sem saber se a gente se infectou ou não, mas sempre naquele medo iminente do que pode acontecer.”
Para João, o pior da covid é viver em estado de alerta, como se fosse uma guerra. “É como se a qualquer momento pudesse cair uma bomba do lado da gente. E não tem corpo que aguente essa quantidade de adrenalina sendo jogada o tempo todo. A gente acaba adoecendo. Estou tomando medicamento ansiolítico, um estabilizador de humor, na verdade, e vou voltar na psiquiatra na semana que vem para ver se está tudo bem. Falar das minhas queixas, fazer acompanhamento. Infelizmente, sozinho eu não consegui, tive que partir para os medicamentos. Antes da pandemia, eu tinha tentado me afastar, por compreender que uma hora seria bom que eu andasse sozinho, mas neste momento de pandemia, eu não consigo. Eu já compreendi que isso é essencial na minha vida, pelo menos nesse momento de guerra que a gente está tendo”, explica ele.
Outra coisa que João acha muito difícil é o fato de as pessoas não estarem lutando só contra o vírus, mas também contra uma política de morte que está estabelecida no nosso país. “Enquanto alguns países têm seus governantes que estão nessa luta contra o coronavírus, a gente não tem essa sorte, a gente tem um governante que é exatamente o oposto disso. Ele luta a favor do vírus, para que a gente se infecte cada vez mais e não importa se as pessoas morram, o que é uma atitude totalmente irresponsável. De um lado, nós temos o medo do vírus e do outro o desamparo da política. Isso é o que afeta, de fato, a nossa saúde mental e que faz com que a gente tenha que recorrer a remédios,” conclui.
Mauricio Barreira
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