A pandemia de Covid-19 e a alta subnotificação levaram o Brasil a registrar menos mortes de pessoas LGBTI+ em 2020. Ao longo do ano passado, ao menos 237 pessoas perderam a vida para a violência LGBTfóbica no país. O total verificado representa uma queda de 28% em relação a 2019. Os dados são do relatório “Observatório das Mortes Violentas de LGBTI+ No Brasil – 2020”, realizado pelo Grupo Gay da Bahia e pela Acontece Arte e Política LGBT+, de Florianópolis.

As entidades ressaltam que, apesar da queda, “não há motivos factíveis para comemorar”. Os pesquisadores consideram que a redução não foi motivada pela implementação de políticas públicas de inclusão e proteção da população LGBTI+, mas sim por uma oscilação numérica “imponderável” e “enorme subnotificação” identificada durante as buscas — uma vez que o levantamento é feito com base em mortes noticiadas pela imprensa e movimentos sociais e não há dados oficiais — , e pelo desmonte nas campanhas de incentivo à denúncia a partir de 2018. Além disso, o relatório aponta para os efeitos da pandemia de Covid-19, que intensificou o isolamento de muitas pessoas LGBT+, tendo em vista que dada população já era impactada pela falta de sociabilidades, referências e espaços.

Apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter equiparado o crime de LGBTfobia ao crime de racismo em 2019, a tipificação ainda não foi adotada de forma abrangente pelos órgãos de segurança pública do país e ainda não há divulgação consistente de dados oficiais. Neste contexto, os bancos de dados e relatórios lançados sobre a violência LGBTfóbica no Brasil são feitos há anos por movimentos sociais e coletivos, como o Grupo Gay da Bahia e a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) , que identificam as mortes por meio de notícias publicadas na imprensa e coletas realizadas cotidianamente na rede de ativistas e colaboradores do movimento LGBTI+ .

Há 40 anos o Grupo Gay da Bahia monitora o número de mortes de gays, lésbicas e pessoas trans no Brasil. Em 1990, o levantamento contabilizou 164 assassinatos motivados por homofobia — na época, eram contabilizadas as “mortes de homossexuais”. Após 20 anos, o número de mortes motivadas por LGBTfobia subiu 60%, para 260 registros identificados em 2010. O maior número de casos foi registrado em 2017, quando foram documentadas 445 mortes de pessoas LGBT+ no país. Os pesquisadores explicam que a violência LGBTIfóbica surge a partir da expressão de identidades e relações sexuais e afetivas que fogem do padrão heteronormativo vigente na sociedade.

Das 237 mortes identificadas em 2020, 161 (70%) vítimas eram travestis e mulheres trans, 51 homens gays, 10 lésbicas, três homens trans e três bissexuais. Em relação a faixa etária, não foi possível identificar a idade da maior parte das vítimas (34%). Outros 33% tinham de 15 a 30 anos e 25% tinham 31 a 45 anos. Em relação às mortes notificadas que continham informações sobre a cor ou raça da vítima, 54% eram de pessoas pretas ou pardas, e 46% de pessoas brancas. Segundo o levantamento, a região Nordeste teve o maior número absoluto e relativo de mortes noticiadas: foram 113 casos e 2,12 mortes a cada um milhão de habitantes nordestinos.

Os pesquisadores apontam como hipótese para um número menor de mortes em 2020 o fato de a pandemia ter imposto o fechamento de atividades não essenciais, em especial boates, bares e equipamentos de cultura, forçando pessoas LGBT+ a um menor convívio social externo, o que auxiliou na queda nos registros, em especial no número de homens gays assassinados, que ficou abaixo do número de mulheres trans e travestis pela primeira vez no relatório feito pelo Grupo Gay da Bahia. Do total de vítimas, 45% eram trabalhadoras sexuais. Quatro em cada dez assassinatos foi cometido por arma de fogo e 70% dos crimes foram cometidos em espaços públicos.

A maior vulnerabilidade da população travesti e transexual também é evidenciada no dossiê feito anualmente pela Antra. Na contramão da queda registrada pelo monitoramento do Grupo Gay da Bahia, o levantamento da associação verificou um aumento na morte de travestis e transexuais em 2020. Foram 175 assassinatos ao longo do ano passado.

Dados parciais divulgados pela entidade mostram que ocorreram 56 assassinatos de pessoas trans e travestis nos quatro primeiros meses de 2021. Os números indicam que as mortes estão acontecendo mais precocemente. Apenas 10 vítimas tinham acima de 35 anos, as demais – onde foi possível identificar a idade – tinham entre 13 e 35 anos.

“A dinâmica do assassinato contra pessoas trans não segue o mesmo padrão dos homicídios em geral pelo caráter que agrega o cruzamento entre o racismo, a violência de gênero e a transfobia estrutural direcionada as vítimas, assim como a forma e intensidade com que os assassinatos são cometidos”, explica a Antra.

A entidade ressalta que os dados produzidos no relatório “não representam a totalidade dos assassinatos cometidos contra travestis e demais pessoas trans”, visto que existem diversas limitações para o monitoramento, em especial a falta de dados governamentais.

Fonte: O Globo