Membros de vários setores da sociedade civil se reuniram, na última semana, em debate virtual promovido pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, a ABIA, para pensar estratégias de ação para garantir acesso equitativo às vacinas contra a Covid-19. O webinário explorou a necessidade de alianças entre diferentes setores e países para priorizar grupos mais vulneráveis nesta pandemia.

Como lembrou Richard Parker, diretor-presidente da instituição, a Covid-19 deixou visível a crise de governança na saúde global, a ponto de se repensar este próprio conceito. “A AIDS, última pandemia do século 20, de certa forma inventou o que chamamos de saúde global. A Covid-19 é a  primeira grande pandemia do século 21 e deve iniciar uma crise nesse conceito. O entendimento de saúde global não vai poder ser o mesmo”, disse ele. Entre os desafios estão o acesso extremamente desigual a vacinas no mundo e a desinformação, entendendo que esta não é uma mera falta de conhecimento mas ativamente construída e alimentada por governos e processos políticos.

No Brasil, por exemplo, desde o começo da pandemia a sociedade civil pressiona diversos órgãos e instâncias governamentais, como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), a tomar medidas mais efetivas e embasadas cientificamente – como o isolamento social e o uso de máscaras. No entanto, embora haja pressão e mobilização, não há comprometimento político com as agendas de fortalecimento da saúde pública, ciência e tecnologia e redução das desigualdades sociais – apenas para citar algumas. O resultado são as mais de 230 mil mortes até agora. “Por mais que o SUS (Sistema Único de Saúde) seja desfinanciado, ele é robusto e tem capacidade de enfrentamento, mas foi muito difícil lutar para conseguir implantar medidas que ajudassem a evitar esse genocídio”, avaliou Moysés Toniolo, representante da ANAIDS no Conselho Nacional de Saúde. “Por mais que tentemos esforços de governança através da participação social, é muito difícil. A gente já sabe o caminho a seguir, mas não temos governo”, acrescentou ele, lembrando da expertise acumulada pelo movimento de pessoas vivendo com HIV.

Nessa linha, Carlos Passarelli, assessor sênior para acesso a medicamentos do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), completou que as quatro décadas de epidemia mostraram que a mobilização popular e comunitária é extremamente importante na definição de políticas públicas eficazes. No caso da Covid-19, no entanto, o que predomina são as muitas desigualdades. Na corrida pela vacina, elas são explícitas, já que os países desenvolvidos garantiram a maior parte das vacinas disponíveis para suas populações, enquanto nações do Sul Global sofrem para garantir as mesmas doses – e quando as adquirem, pagam mais caro do que os países ricos. “Se não protegermos a todos, ninguém vai estar protegido”, resumiu.

O assessor do UNAIDS destaca que, já que o atual ritmo de produção é insuficiente para atender todas as pessoas, ou esta deve ser priorizar grupos mais vulneráveis ou então se deve aumentar a produção de vacinas. Mas para isso, é preciso que mecanismos de compartilhamento de propriedade intelectual funcionem. Para isso, o entrave são os países ricos, detentores das tecnologias, que não têm demonstrado interesse em aumentar esse acesso. E o Brasil tem se aliado a estas nações, e não àquelas em desenvolvimento que batalham por melhores preços ou pela quebra das patentes. “Acredito que temos as soluções e mecanismos para sair dessa crise, mas precisamos de mobilização, e ela precisa ser coletiva”, finalizou Passarelli.

Para Renata Reis, doutora em políticas de saúde e membro da Comissão COVID-19 do periódico The Lancet, a saída é radicalizar as demandas. Isto é, não lutar por soluções paliativas mas sim pelas que verdadeiramente podem resolver a questão. “Não falamos de flexibilização patentária, mas de garantir um bem comum. Não podemos nos contentar com o mais ou menos”, resume.

Na avaliação de Renata, a atual situação brasileira é o resultado de décadas de escolhas equivocadas em políticas públicas – já alertadas pelo movimento de HIV/AIDS há anos. “Sim, há imposições vindas de países ricos, mas há escolhas. Basta olhar o exemplo da Índia: não era um país tecnológico nos anos 80, mas optou por investir em capacidade tecnológica e agora é um dos grandes produtores de vacina do mundo. Enquanto isso o Brasil optou pela dependência, fez políticas liberais que desmontaram parques industriais e agora precisa importar farmacêuticos de alto valor agregado”. A demora no início da vacinação contra Covid-19 no Brasil deixou, inclusive, essa dependência explícita – e por isso a urgência em radicalizar as demandas. E se há quem ache impossível, a provocação de Renata não poderia mais certeira: “O que é possível na vida de um ativista pela saúde pública? Se só sairmos de casa para demandar o que está garantido, não teríamos nada”.

Ao final, Richard Parker reforçou que, em dezembro de 2020, a ABIA  lançou uma publicação com análises contundentes sobre o fracasso da resposta brasileira à Covid-19 e os problemas gerados no enfrentamento do HIV/AIDS: o Dossiê HIV/AIDS e COVID-19 no Brasil. Para baixar, acesse http://abiaids.org.br/dossie-abia-hiv-aids-e-covid-19-no-brasil/34379

O debate “Políticas de vacinas para a COVID-19” está disponível no Youtube da ABIA.