Neste primeiro de maio, celebramos o dia do trabalhador dando visibilidade a duas histórias opostas de pessoas vivendo com HIV no mercado de trabalho, uma de acolhimento e apoio, vivida pela aposentada Silvia Almeida, e uma de sorofobia e exclusão, enfrentada pelo comunicador Djair Gomes. Devido ao estigma e discriminação tão comuns em nossa sociedade, infelizmente a segunda situação ainda é muito recorrente no país, fazendo com que muitas pessoas mantenham seu diagnóstico no sigilo. Inclusive, a Lei nº 14.289 de 2022 estabelece a obrigatoriedade da preservação do sigilo sobre a condição de pessoas com HIV, hepatites crônicas (HBV e HCV), hanseníase e tuberculose, desobrigando os cidadãos a revelarem qualquer informação relacionada a essas condições e em quaisquer contextos. Mas não é sempre que é respeitada.

Djair estudava enfermagem em 2016 quando decidiu doar sangue numa visita ao Centro de Doação de Sangue de Aracaju, cidade onde vive. Ele sempre quis ser um doador, mas a falta de tempo era uma barreira. No entanto, um dia, a coordenadora de seu curso o levou para doar sangue junto a turma. Uns dias mais tarde, ele recebeu uma correspondência na residência de seus pais, solicitando a realização de novos testes. Na ocasião, já havia deixado a casa dos pais e estava morando sozinho. Durante o expediente de trabalho, recebeu um telefonema da mãe, informando sobre a carta. Diante disso, recorreu ao Google em busca de informações, preocupado com a possibilidade de resultado positivo para HIV e acabou compartilhando sua angústia com uma colega de trabalho.

Djair refez o teste e confirmou o diagnóstico positivo para HIV. Foi trabalhar logo em seguida e comentou com a mesma colega o resultado do exame. No dia seguinte, outros colegas de trabalho já estavam cientes de sua condição e começaram a questioná-lo. “Algumas pessoas me perguntavam como que era a medicação, se eu já estava tomando. No momento que eu conversei com ela, ela super me acolheu, mas depois acabou me expondo para as outras pessoas do trabalho”, relembra o comunicador. 

Após um intenso assédio dos colegas no restaurante em que trabalhava, um dia ele acidentalmente se cortou e a dona do estabelecimento sugeriu que ele lavasse o corte na privada. “Eu fiquei sem entender e me questionando porque ela tinha me falado aquilo. Alguns dias depois, ela entrou em contato com a minha irmã que morava em outra cidade e contou meu status para a minha família, inclusive meus pais, que ficaram muito assustados porque não tinham conhecimento”. Em seguida, alegaram que Djair estava “indisposto” e o demitiram. “Acho que na cabeça dos meus chefes, o fato de eu ter me cortado secando os talheres representava um risco para as outras pessoas”, conta. 

Djair ainda não tinha tanto conhecimento sobre a vivência com HIV/aids, mas sabia que era crime demitir uma pessoa que vive com HIV só por ela viver com HIV, ou sem motivo nenhum. Ele ainda tentou recorrer de seus direitos através da Justiça, mas se viu desamparado e sem dinheiro para continuar essa briga. Desempregado, tinha voltado a morar com os pais, que tinham sido manipulados por seus ex-empregadores de que por ter HIV ele deveria se aposentar. ”Eu tentei entrar em contato com um advogado, mas ele nem me respondeu. Ele era cliente do restaurante e um pouco próximo dos donos, não sei se ele não respondeu por conta disso ou por ser sorofóbico também”. Não bastasse, seus pais ainda confiscaram seus documentos e celular, além de impedirem que Djair continuasse os estudos de enfermagem. “Eles não deixavam eu estudar porque eles diziam que eu ia me aposentar e foi o pessoal do estabelecimento que botou essas coisas na cabeça deles”. 

Após uma extensa pesquisa sobre o assunto, Djair acredita que pessoas que vivem com HIV que enfrentam discriminação, especialmente no ambiente de trabalho, devem buscar reunir o máximo de provas para fundamentar suas queixas. Reflete sobre sua própria experiência ao mencionar que, ao procurar aconselhamento jurídico, percebeu a dificuldade em comprovar a sorofobia que havia sofrido de seus chefes e colegas. “Minha dica para as pessoas é registrar ao máximo a situação de sorofobia que você está passando no trabalho, qualquer tipo de pergunta, qualquer tipo de indireta, qualquer coisa invasiva, qualquer coisa sorofóbica mesmo. Tentar gravar, registrar, ou então, procurar uma testemunha que seja um cliente ou um amigo que frequente esse local”, sugere o comunicador. 

Acolhimento no ambiente de trabalho

A experiência de Silvia Almeida foi totalmente diferente, cheia de carinho e cuidado. A aposentada descobriu seu diagnóstico em 1993 quando ainda era casada com seu primeiro marido com quem viveu 14 anos até sua morte em 1996. Após 10 anos trabalhando em uma multinacional sul-africana, Silvia conta que seu marido começou a adoecer com frequência e teve o diagnóstico de aids. Em seguida, fez o teste junto com seu filho pequeno de um ano e meio. “Naquela época, demorava dois, três até quatro meses para sair o resultado. Quando veio o meu resultado eu estava infectada com HIV e o meu filho, não”,  conta Silvia. Em menos de 2 anos seu marido faleceu.

Durante esse período tumultuado, ela teve dificuldades em conciliar suas responsabilidades profissionais com os desafios pessoais que surgiram devido à doença e morte de seu marido e sua própria condição de saúde, além de cuidar de seus dois filhos, um de um ano e meio e uma adolescente de 13 anos. Essa situação refletiu negativamente em seu desempenho como telefonista na empresa, resultando em lapsos e esquecimentos em suas tarefas diárias. “Minha chefe me chamou e perguntou o que estava acontecendo. Como nós éramos muito amigas, eu contei pra ela o que eu estava vivendo. Ela tinha um primo que morreu de aids. Além disso, ela conhecia muito bem o nosso diretor, que havia acabado de chegar da África do Sul, uma pessoa muito sensível, muito humana, e disse que iria contar para ele para que ambos pudessem me ajudar. Inicialmente eu falei que achava melhor não, mas ela contou e ele realmente me ajudou”.

A empresa manteve o sigilo do diagnóstico de Silvia e comprava e importava medicação que ainda não tinha no Brasil para que ela fizesse o tratamento. Suas lideranças inclusive permitiam que ela participasse de encontros, reuniões e até viagens que tratassem do tema HIV/aids. Nesse processo de aprendizagem, Silvia despertou para a necessidade de se falar sobre o assunto de maneira responsável e aberta, desmistificando crenças estigmatizantes e proliferando informações corretas. “A empresa era imensa, tinha mais de 4 mil empregados e, quando eu me senti segura, falei para esse diretor que eu queria começar a dar palestras na empresa. E ele me perguntou: ‘você tem certeza que quer ter essa visibilidade, você quer se expor?’ E eu falei que sim, que eu queria porque as pessoas tinham informações muito erradas sobre tudo. Hoje ainda existe preconceito, naquela época o preconceito era maior ainda e eu era uma mulher com 30 anos, casada com o primeiro namorado, cujo marido morreu de AIDS, eu tinha o vírus do HIV, era um caso completamente diferente de tudo aquilo que a gente estigmatizava”, lembra Silvia sobre uma época em que se acreditava que somente homens que fizessem sexo com homens, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo se infectavam pelo vírus.

Silvia acredita que as pessoas aprendem muito mais com quem tem HIV do que com uma propaganda de televisão. “Nós somos um canal de informação muito importante e quando a gente se esconde, quando a gente não se expõe de uma certa maneira, a gente perde a oportunidade de informar outras pessoas que estão ao nosso redor, tanto para que não haja tanta discriminação, quanto para que as pessoas também se vejam como vulneráveis, o que geralmente não acontece”.