A permanência da doença está relacionada a determinantes sociais, como condições de moradia, saneamento básico e acesso aos serviços

Tecnologia de IA ajuda a identificar de forma mais rápida e fácil casos de tuberculose

Parece estranho, em 2024, nestes tempos sísmicos de inteligência artificial e avançadas tecnologias, quando poderíamos escrever quase epicamente sobre os muitos registros de memória sobre a tuberculose, seus personagens ora carregados de lirismo, ora de tragédia, sobretudo no século XIX, que assim não seja. Todos nos lembramos das obras literárias seminais, como a Montanha Mágica, de Thomas Mann, com seu universo sanatorial ou óperas como La Traviata, La Bohème e suas encantadoras personagens tísicas. É Mann que nos diz que “os sintomas da doença nada mais são do que manifestação disfarçada do poder do amor, e toda a doença é apenas o poder do amor transformado”.

Entretanto, neste 24 de março, Dia Internacional da Tuberculose, tratamos de uma doença que ainda acomete 10 milhões de pessoas e mata cerca de 2 milhões, a cada ano, no mundo. No Brasil, os números são também de surpreender os que pensam que a enfermidade é coisa do passado: 80 mil casos novos a cada ano, e 5200 mortes em 2023. Doença infecto contagiosa, da imunidade celular, transmitida de uma pessoa a outra através da via aerógena (tosse, espirros, contato), tem 80% das formas pulmonares, e exige diagnóstico precoce, tratamento oportuno e controle de contatos. Para isso existem armas como a vacina BCG, aplicada no Brasil a todo recém-nascido com mais de dois quilos, capaz de proteger contra formas graves e disseminadas da doença, e tratamento profilático de alta eficácia, para contatos de caso doente. Ainda, exames bacteriológicos de escarro, e radiografias e outras imagens de tórax, confirmam o diagnóstico. A pandemia da Covid-19 lentificou a redução das taxas de incidência, de cerca de 2,5% ao ano, já longe de ser a ideal, pelo impacto nos serviços de saúde.

Os primeiros medicamentos surgiram após a Segunda Guerra Mundial, com a estreptomicina e a pirazinamida, e já no início da década de 1960, os ensaios clínicos, desenvolvidos e publicados pelo British Medical Council demonstraram que, uma vez entendida a biologia do patógeno, (micobactéria aeróbica, que se desenvolve em velocidades diferentes nos pulmões), a associação de fármacos, com ações bactericida e esterilizante, somada ao tempo de tratamento, era o que assegurava a maior possibilidade de cura. Esse conceito perdurou por muitas décadas até recentemente, quando o maior desafio, a partir da descoberta de novos medicamentos, no que chamaríamos de momentum dos últimos 15 anos, passa a ser a redução do tempo de tratamento, com a mesma ou maior efetividade, melhor adesão dos doentes e menos sofrimento humano.

Os sanatórios até o advento dos regimes orais, tratavam pacientes por média de um ano e meio a dois, até que no final dos anos 60 a descoberta da rifampicina, um fármaco de grande capacidade bactericida e até hoje carro chefe dos esquemas padronizados no mundo todo, propiciou prognósticos excessivamente otimistas de eliminação da doença, sem entretanto, levar em conta os determinantes sociais de perpetuação da mesma além da pandemia de HIV-Aids, que surgiria nos anos 1980. Até hoje a tuberculose é a condição que mais adoece e mata pessoas vivendo com HIV. Soma-se ainda o grande número de imunobiológicos ora em uso para outras doenças, e que aumentam o risco, por comprometerem a imunidade celular.

Portanto, em se tratando de nossos dias, seria um quase paradoxo, para um país como o Brasil, que elabora normas cientificamente de boa qualidade com chancela acadêmica e da saúde pública, que oferece tratamento gratuito, com todos os melhores fármacos disponíveis, testados em estudos clínicos tanto para formas sensíveis quanto resistentes da doença, além de métodos moleculares de diagnóstico rápido na rede do SUS, que se mantenha essa situação epidemiológica desfavorável, nos mantendo na lista de países de alta carga de acordo com a OMS. Fica claro que a permanência da doença está relacionada a determinantes sociais, como condições de moradia, saneamento básico, acesso aos serviços, e condições chamadas “catastróficas” pelos custos indiretos gerados pelo longo tempo de tratamento.

Fonte: O Globo