Coragem, potência e entrega. São estas as palavras que Renata Nunes – escritora, palestrante e influenciadora digital, Marina Vergueiro – jornalista e poeta, e a escritora, Helena T., respectivamente, escolheram para descrever o que significa ser mulher na literatura. Na tarde desta terça-feira (26), elas compartilharam parte de suas experiências durante o bate-papo ‘Mulheres, Literatura e HIV: vamos falar sobre isso?’, transmitido pelo SESC São Paulo, no Youtube, em parceria com a Agência Aids. A mediação ficou por conta da jornalista e diretora desta Agência, Roseli Tardelli.

No bate-papo, as entrevistadas dividiram com o público suas impressões sobre ser mulher vivendo com HIV na produção e transmissão de saberes. Também trouxeram à tona suas paixões, desafios e conquistas, mostrando que seus escritos são mais do que histórias, são narrativas de resistência e força para seguir e inspirar outras mulheres que vivem ou não com o vírus, a se aceitarem e se valorizarem, apesar de todo o estigma que o HIV/aids traz.

Vulnerabilidade da mulher 

Iniciando o encontro, Roseli Tardelli apresentou dados do Unaids (Programa das Nações Unidas Sobre HIV/Aids) sobre o atual contexto da epidemia de aids entre as mulheres. De acordo com o mais recente relatório do Programa, das 39 milhões de pessoas que vivem com HIV em todo o planeta, 53% são mulheres. Além disso, mulheres e meninas foram responsáveis por 50% de todas as novas infecções em 2020, evidenciando a vulnerabilidade delas quando se trata do HIV no século XXI. Neste sentido, a jornalista provocou o seguinte questionamento: “Por que a vulnerabilidade da mulher permanece, apesar das amplas tecnologias de prevenção e informação que temos hoje?”.

A poetisa Marina Vergueiro considera que a vulnerabilidade está ligada a um problema que acomete as mulheres há séculos: o machismo e a desigualdade de gênero. “Acredito que a gente ainda viva numa sociedade extremamente machista e que o machismo tem ganhado novas cores e novas formas nos últimos anos, principalmente com a ascensão de grupos da extrema-direita, extremamente moralistas e misóginos, que nutrem uma raiva às mulheres. Além disso, à medida que as mulheres começam a se empoderar, principalmente com a internet, e a compartilhar suas experiências, soluções, expor casos de violência, vem também o backlash, que é justamente resultado desse machismo estrutural”, disse.

Entretanto, seu olhar com relação ao futuro da luta feminina em prol da igualdade de gênero é bastante positivo e otimista. Ela acredita que estamos caminhando para um lugar mais seguro, onde as mulheres possam falar sobre as suas experiências de vida, os seus desejos, direitos, conquistas e desafios. “E a literatura, definitivamente, é uma maneira da gente não só dar voz à nossa força pessoal e feminina, além de ser uma maneira de acolher outras mulheres que se sentem sozinhas e, talvez, lendo um livro, se reconheçam nas nossas histórias, nos nossos poemas, nos nossos depoimentos e se fortaleçam, não necessariamente para expor ou denunciar algo, mas, se possível, também, mas principalmente para poderem se levantar, poder seguirem suas vidas, recuperarem sua dignidade e a possibilidade de oportunidade de viver uma vida plena, alegre e saudável.”

Na sequência, Roseli ressaltou que a violência contra as mulheres é um problema social grave com impactos negativos, sobretudo no Brasil. Muitas mulheres que sofrem violência têm dificuldade em negociar, por exemplo, o uso de preservativos nas relações sexuais, acabando por ficarem sujeitas a menos controle sobre sua saúde sexual, o que contribui para a vulnerabilidade ao HIV/aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).

A maior entrega e dedicação, que segundo Helena T., as mulheres geralmente demonstram, são características que muitas vezes também as vulnerabilizam mais. “Para além de tudo, nós estamos falando de amor. E o amor necessariamente, ele é vulnerável. Por trás de toda a relação amorosa, existe uma série de condições, uma série de posições da mulher, que são difíceis no nosso contexto atual. Eu penso que essa vulnerabilidade do amor faz com que, geralmente, a mulher se entregue muito mais do que o homem [nas relações]. Aliás, há uma escritora chamada Anne Carson, que faz menção a uma ideia trazida lá dos gregos – e que é pertinente aos nossos tempos -, de que as mulheres têm limites líquidos. Já os homens têm os limites contidos. De modo que as mulheres, elas penetram nos ambientes e adquirem a posição daquele ambiente, adquirem a forma, são muito mais adaptáveis. Mas, ao mesmo tempo, elas são mais perigosas. Porque não há como você determinar esse limite líquido. Até onde ela vai? Onde ela chega? Ela vai me afogar? Isso tudo na relação amorosa é muito sutil, muito tênue […]. As mulheres reservam em si essa condição de provocar um medo no outro, por conta de toda essa situação ilimitada da sua expressão pessoal”, afirmou a escritora.

Dependência financeira 

A também escritora, Renata Nunes, concordou e levantou um ponto importante de reflexão: a importância da liberdade e emancipação financeira feminina. Isso porque considera um dos mais latentes motivos que levam milhares de mulheres a ainda permanecerem dentro de relacionamentos tóxicos, abusivos e/ou disfuncionais. “A questão da liberdade financeira impacta muito. Hoje a gente sabe que, embora exista um avanço em relação aos direitos à igualdade entre homens e mulheres, ainda existe a desigualdade. Então as mulheres, automaticamente, também são mais vulneráveis financeiramente, e com isso têm menos acesso à informação, além dessa própria questão da entrega do ser mulher”.

“Digo até pela minha experiência pessoal dos relatos que recebo de mulheres que vêm até mim, especialmente depois que eu escrevi o meu livro, muitas delas, ou a maioria delas, contraíram o HIV dentro de um casamento, confiaram, se entregaram, priorizam a família, se permitiram estar em lugares e a viver relacionamentos, muitas vezes, abusivos, e acabaram não desenvolvendo a carreira ou não tiveram essa oportunidade. 

A arte cura

“A arte é uma cura muito potente, acho que para além dos medicamentos e, enfim, de diversas atividades que a gente pode fazer para o nosso bem-estar, eu acho que a arte é uma maneira de expressar nosso sofrimento, a nossa dor, e também nossas alegrias, nossos desejos, nossas aspirações. Então eu realmente entendo a literatura e, no meu caso, a poesia como uma válvula de escape para as questões que me afetam como um todo, que me revoltam e que também me deixam em situações vulneráveis”, apostou Marina Vergueiro.

“A arte é a conexão, a arte conecta, a arte traz a nossa criatividade, a nossa sensibilidade, o nosso poder, porque a mulher ela tem essa característica, o feminino tem essa característica criativa, essa característica sensível, mais emocional do que racional, e pra mim a arte também é a expressão, é essa conexão, que conecta com o outro, que traz essa parte mais emocional do que racional”, continuou Renata Nunes.

“Há dois pontos. Há o emissor da arte e o receptor da arte, e acho que os dois pontos se beneficiam demais dessa expressão artística. Tanto aquele que faz a arte quanto aquele que recebe a arte. Nos dois momentos, são situações em que vai um pouco além do que é formal, do que é real. […] esse desconforto que as palavras podem traduzir para quem lê, isso sim é um momento de autoconhecimento e um momento de fortalecimento que eu acho que faz bem a todo mundo”, complementou Helena T, destacando as transformações das civilizações que observou na evolução dos tempos e suas repercussões nas conquistas e avanços do espaço feminino, especialmente dentro do mundo da literatura seja clássica ou contemporânea. “Houve uma fase da nossa civilização inteira em que as mulheres escritoras foram apagadas. Foi um processo de apagamento da escrita feminina, no sentido não de ser uma escrita de gênero feminino, das mulheres escritoras. E isso vem sendo recuperado recentemente. Inclusive, o que eu observei é que escritoras já mortas há muito tempo estão sendo reeditadas e reconsideradas no cenário literário. Isso é incrível. Os prêmios literários, os últimos prêmios literários, foram dados, a maior parte deles, a escritoras, a mulheres escritoras. E, olha, são mulheres escritoras muito jovens. Então, eu acho que as coisas estão mudando! Eu sinto que o mercado editorial está sendo muito mais receptivo às mulheres”, celebrou.

“[…] E eu me pergunto se as mulheres realmente não têm mais o que dizer do que os homens nos nossos dias, porque, veja bem, outro dia até me falaram assim: ‘Mas, Lena, você não escreve sobre felicidade?’ Eu fiquei pensando naquilo e afirmo que a paz, a harmonia, é muito provocada por coisas generalistas, por momentos muito banais no dia a dia. O que faz a gente escrever, o que faz a gente criar histórias é justamente a desarmonia. O susto, o espanto, o medo, o ciúme, a inveja, esses sentimentos que são básicos do homem, da mulher, do ser humano… justamente este o momento transformador da arte e da literatura. A literatura lida com imaginação, imaginação e consciência do leitor. Portanto, leva a reflexões”.

E estas reflexões a que a literária se refere, ela entende que atuam como catalisadoras e geradoras de ideias, inspirando e motivando os leitores a construírem novas conexões e pontes de conhecimento, ampliando assim sua compreensão e reflexão sobre um mundo melhor para todas as mulheres e meninas. 

Fonte de aprendizado

Renata Nunes acredita que é possível fazer da dor uma fonte de aprendizado. A autora nunca planejou se tornar escritora, mas decidiu escrever o livro como uma forma de lidar com a dor e a rejeição que sentiu após um término de relacionamento devido ao HIV. Renata queria compartilhar sua história para inspirar, principalmente, outras mulheres a serem autênticas e a enfrentarem o estigma e o medo da rejeição de frente. Segundo a autora da obra ‘Como o HIV mudou a minha vida para Melhor e o que isso tem a ver com você’, não romantiza a questão, mas mostra seu processo de transformação após o diagnóstico e que viver com HIV não é motivo de vergonha. A decisão de escrever veio do desejo de não mais passar por situações de rejeição, de querer colocar um fim no ciclo de ter que precisar esconder sua condição e a partir da vontade de quebrar o tabu em torno do assunto. “O meu livro vem para quebrar essa barreira e como um grito de guerra mesmo, de liberdade. Liberdade de poder ser quem eu sou e de poder falar abertamente sobre isso, sem nenhum receio ou culpa”, afirmou Renata.

Referências e inspirações femininas na literatura

A poetisa Marina Vergueiro, compartilhou algumas de suas referências literárias femininas, mencionando desde artistas clássicas como Clarice Lispector, à colegas contemporâneas. Ela disse que é especialmente fã do trabalho de Priscila Obace, uma poeta e atriz negra vivendo com HIV, assim como valoriza o trabalho de Luz Ribeiro e Mel Duarte. A autora acompanha o trabalho dessas artistas desde o início de suas carreiras e contou ser grata pela troca com essas colegas de jornada, reafirmando a importância de se inspirar umas nas outras.

Já Renata nutre como referências diversas autoras, mas destaca uma: Kelly Singularidade, autora do livro auto-bibliográfico ‘Vitiligue-se’, onde conta a sua história de superação através do vitiligo. “Este é um livro que me inspirou muito a escrever o meu.”

Helena, que não ousa a citar autoras específicas, pois são tantas as vozes que lhe encantam, destacou: “Eu costumo dizer que o que me inspira é o que eu estou lendo por último.”

Ainda foi ponto de discussão que, embora o movimento feminista tenha nascido nos anos 60, se comparado com a história do Brasil de 500 anos, ou mesmo da República, que é muito mais jovem, todo este debate é ainda muito novo. Entretanto, o movimento das mulheres de tomada de consciência, empoderamento e reivindicação está cada vez mais potente, e não tem volta. As convidadas compreendem que muitos caminhos estão sendo abertos, a exemplo de que não existiam espaços para mulheres na Academia Brasileira de Letras, algo que hoje já é realidade ao ver muitas mulheres sentadas neste mais alto órgão da literatura, inclusive uma mulher negra: Conceição Evaristo, que também é poeta brasileira e produz ainda, em vida. “A gente está conquistando muitos espaços, e essa nova geração de meninas está ocupando, questionando e mudando o status quo”, celebrou e finalizou Marina Vergueiro.

Assista o bate-papo na íntegra:

Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Marina Vergueiro

E-mail: marina@agenciaaids.com.br

Helena T.

@helena_trevisan_escritora

Renata Nunes

@renatanunesm