As Forças Armadas brasileiras discriminam pessoas vivendo com HIV nos processos de admissão em diferentes carreiras. Editais e concursos de promoção promovidos pelo Exército, pela Marinha e pela Aeronáutica insistem em excluir pessoas vivendo com HIV, mesmo que em excelentes condições clínicas e aptas às funções pretendidas.

Tal posição revela um descompasso com a ciência. Não restam dúvidas de que uma pessoa pode viver com HIV e viver bem e em perfeitas condições clínicas.

Há tratamentos eficazes, gratuitos e disponíveis (como parte do que outrora fora uma política pública bem-sucedida e reconhecida internacionalmente) e, com eles, uma pessoa com HIV pode ter uma carga viral tão baixa que chega a ser indetectável e o vírus, intransmissível sexualmente.

Revela, também, um descompasso com o direito. Afinal, toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência que se baseie em motivos ilegítimos será uma discriminação ilegal. Os editais para ingresso em diferentes carreiras das Forças Armadas exigem o exame anti-HIV, um exame de sorologia que apenas demonstra se há presença do vírus de imunodeficiência humana, não explicitando a carga viral ou a condição de saúde da pessoa e, tampouco, a sua capacidade de exercer o cargo.

A discriminação de pessoas vivendo com HIV está institucionalizada nas Forças Armadas em normativas internas que embasam o pedido do exame de HIV no serviço militar e faz as pessoas que convivem com o vírus sejam consideradas incapazes.

Ao não fazer qualquer avaliação de que pessoas podem viver com HIV e possuírem capacidade para exercer o cargo pretendido, as normas militares demonstram estarem desatualizadas em relação à medicina. Não só, apontam para o reforço do estigma e do preconceito contra pessoas vivendo com HIV.

O Unaids, programa das Nações Unidas para o combate à aids, criou o “Índice de estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/aids” em 2019 e, através desse índice, foi possível perceber como a exclusão no mundo do trabalho é uma realidade para essas pessoas: mais de 64% dos que vivem com HIV ou aids no Brasil já sofreram discriminação – a qual se manifesta na perda de fonte de renda ou emprego, em 19,6% dos casos.

A discriminação de pessoas vivendo com HIV pelas Forças Armadas foi levada aos tribunais. Há centenas de casos em tribunais regionais e superiores tratando do mesmo assunto. A Clínica de Litigância Estratégica em Direitos Humanos da FGV Direito SP e o Grupo de Inventivo à Vida, organização que atua na garantia de direitos das pessoas com HIV, se manifestam como amici curiae e apresentam argumentos para que as Forças Armadas não sejam o último reduto de discriminação formal de pessoas vivendo com HIV.

A definição de estigma no dicionário diz: “marca, cicatriz perdurável”. É preciso superá-lo, pela ciência e pelo direito.

(*) Eloisa Machado é professora da Clínica de Litigância Estratégica da FGV Direito SP. A ação foi realizada em parceria com Cláudio Pereira e Jorge Beloqui, do Grupo de Inventivo à Vida, e contou com a participação dos alunos Ana Beatriz Santos Pires, Ana Carolina Souza Dias, Andrey Vishnevsky Fortes, Gabriela Teixeira Cavagnoli, Gianlucca Gariglia, Isabela da Silva Bertucci, Kannan Cesar, Miguel Arthur Martins Guethi, Nicole Pudo Gomes e Steve Kikudi.

Fonte: Leonardo Sakamoto (UOL)