Etarismo na medicina (Crédito: André Mello/ Editoria de Arte)

No final de 2023, Karina Prall levou a mãe, Lise, 82 anos, a um cardiologista particular. Com histórico de pressão alta, ela havia acabado de perder um filho, estava obviamente muito desanimada e se queixava de uma dor de cabeça constante, coração batendo forte, cansaço extremo e dificuldade para subir as escadas de casa. No consultório, tudo foi relatado ao médico. Mas o profissional não achou nada relevante.

— Ele começou a quase que tirar um sarro: “você acha que está com pressão alta porque está com dor de cabeça, mas não tem nada a ver”. Ele parecia querer induzi-la a pensar que não tinha nada, não queria nem fazer um exame nela. Eu tive vontade de levantar e bater nele. Mexem com filho a gente vira leoa, e quando mexem com mãe é a mesma coisa! A gente não consegue tolerar — desabafa.

Assim, Karina cobrou que o médico prestasse atenção ao relato de sua mãe e insistiu que ela fizesse um exame. O resultado foi que Dona Lise realmente estava com a pressão alta, o coração ruim e, desde então, está sendo medicada para o problema.

Agora, a filha acompanha a mãe a consultas oftalmológicas, pois ela está com glaucoma, catarata e degeneração macular. E enfrenta outros desafios:

— Os idosos são mais lentos e, hoje em dia, que os médicos são tão jovens e rápidos, eles têm dificuldade de lidar com essa geração. Eles não têm paciência de escutar e acho que isso compromete o atendimento. Ela precisaria dizer o que de fato está enxergando. Mas eles não prestam atenção — conta.

O que Karina está presenciando é o etarismo na medicina. Relatos de profissionais que conversam com o acompanhante como se o paciente idoso não estivesse presente, tratam a pessoa sem paciência, não ouvem suas queixas, e, pior, acabam não prescrevendo exames e tratamentos como se tudo fosse culpa da idade e não houvesse o que fazer, são comuns.

Para o médico e gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil, o problema começa na formação dos médicos. Apenas 10% dos cursos de medicina no Brasil têm a disciplina geriatria, que é o ramo especializado no estudo, na prevenção e no tratamento de pessoas na terceira idade. Há um déficit de pelo menos 28 mil geriatras no país.

— Estamos correndo atrás de uma cegueira profissional. Estamos treinando médicos como eu fui treinado nos anos 1960: naquela época era admissível que a gente aprendesse tudo sobre criancinha e mulher grávida, mas tudo mudou. Estamos hoje com uma expectativa de vida 20 anos mais alta do que quando eu me formei. E parece que os currículos não acompanharam essa revolução da longevidade — avalia.

Assim, falta preparo para lidar com esse crescente contingente de pacientes que, assim como toda etapa da vida, tem suas características e peculiaridades.

— O profissional não faz a prevenção porque o paciente está velho, não vai tratar porque “é natural da idade”. É o idadismo. A falta de atenção, o preconceito que vai se infiltrando nos serviços… Aquele médico nem tem percepção do mal que está fazendo. Ele não foi treinado para isso. Foi treinado para curar, mas quando envelhecemos temos problemas que não são curados, mas cuidados, respeitando o direito à dignidade e à qualidade de vida — explica Kalache.

O especialista ainda avalia que os preconceitos vão se sobrepondo: à questão da idade, se soma o gênero, a raça, a classe social… Então, se além de idosa, a paciente é uma mulher negra e pobre, menos ainda suas queixas serão escutadas e tratadas.

Nos anos 1970, Kalache realizou estudos sobre como melhorar o atendimento aos idosos pelos estudantes de medicina. Mais do que colocá-los numa enfermaria com pacientes de idade, o convívio com as pessoas antes que ficassem doentes, ouvindo suas histórias, compartilhando eventos sociais, fazia com que se sensibilizassem para o valor daquele indivíduo. Natural, já que quando os nossos pais ou amigos são os velhinhos atendidos, esperamos sempre o melhor para eles.

Pressa demais

Além da formação, o próprio mercado dificulta essa relação. A necessidade de atender um grande volume de pacientes acaba fazendo com que o tempo despendido com cada um seja cada vez menor. Assim, para o médico geriatra Milton Crenitte, consultor em longevidade pela Unesco e colaborador do serviço de geriatria do Hospital das Clínicas da USP, mudanças estruturais são necessárias.

— Há um grande gargalo que são os atendimentos de 15 minutos. A medicina, como todas as áreas que estão nessa lógica da pressa, precisa de mudanças estruturais. É necessário pisar no freio e ouvir mais. Temos exames caríssimos que podem virar o paciente do avesso, mas não é isso que precisamos, mas ouvir, individualizar e respeitar a pessoa idosa — explica.

Crenitte ressalta que muitos médicos vêm incorrendo na omissão terapêutica, que é não dar um remédio ou pedir um exame porque o paciente está muito velho, tornando-se omisso ao não tratar uma condição que precisa ser tratada como pressão alta, diabetes, colesterol, depressão etc.

Por outro lado, há também o hipertratamento, que acontece quando uma condição é tratada em demasia.

— Não é o erro médico, mas como não individualiza, não ouve o paciente, causar um mal desnecessário. Você não trata o diabetes de um paciente de 94 anos como de alguém de 60, porque se fizer o mesmo tratamento tem mais risco pela função do rins, do fígado, de ter hipogliceimia. Mas o grande lema é que nenhum tratamento pode levar em conta só a idade, porque idade não quer dizer nada hoje em dia. Uma pessoa de 60 anos que teve vários AVCs e está acamada é diferente do que uma pessoa de 90 anos que corre todo dia — afirma.

A fonoaudióloga Juliana Venites, presidente do departamento de gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia do Estado de São Paulo, já ouviu colegas defenderem que pacientes idosas, pela idade, precisavam comer tudo batido no liquidificador. Mas não é isso o que a paciente quer e nem precisa ser assim.

— O que a gente mais escuta é que “isso é esperado pela idade”. Mas nem tudo é comum para o envelhecimento e pode ter condições, sim, de melhorar. E às vezes essa ideia acaba sendo interiorizada pelo próprio paciente, que considera normal sentir aquele desconforto simplesmente porque é velho — diz.

Convívio

Para a gerontóloga (pessoa que estuda o envelhecimento em diversos aspectos – biológicos, psicológicos, sociais e outros), as queixas precisam ser tratadas quando surgem, sob o risco de os problemas se agravarem com o tempo. E não importa se o paciente tem pela frente, 30 anos, três anos ou três meses (até porque ninguém sabe), mas que tenha sua qualidade de vida preservada:

— Hoje envelhecemos melhor dos que há 20 anos, mas não dá mais para negligenciar as particularidades do idoso. Só assim, como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) diz sobre a década do envelhecimento saudável, traremos “mais vida aos anos, não apenas mais anos à vida”.

Tudo depende também de um olhar mais humano. Venites considera que a principal maneira de combater realmente o etarismo é quando idosos e jovens puderem conviver mais.

— Um dos pontos principais para o bom envelhecimento é a intergeracionalidade, que faz parte não só de promover um envelhecimento com qualidade, mas vai refletir numa sociedade diferente — defende.

 

Fonte: Constança Tatsch / O Globo

Fonte: O Globo