Apesar dos méritos da política do SUS (Sistema Único de Saúde) voltada à saúde da população LGBTI+, parte de seus objetivos não saíram do papel, e esse grupo sofre constantes casos de discriminação quando busca cuidados, segundo o pesquisador Cezar Nogueira.

Doutor em bioética, ética aplicada e saúde coletiva pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) com pesquisa sobre políticas para o público LGBTI+, Nogueira destaca os efeitos negativos das lacunas do serviço público para sua saúde sexual e reprodutiva, ainda pouco acolhida no sistema de saúde.

Nesta entrevista ao Nexo, ele explica como os obstáculos para o acesso à saúde sexual impede pessoas LGBTI+ de terem autonomia sobre seu corpo ou formarem famílias. Também conta a história da política de saúde atual e opina sobre o que é preciso fazer para melhorá-la.

O que o país oferece à população LGBTI+, em termos de política pública, para que ela cuide de sua saúde sexual e reprodutiva?
CEZAR NOGUEIRA: Existe hoje a Política Nacional de Saúde Integral LGBT, uma política que foi criada a muitas mãos. É uma política que começou a ser construída no início dos anos 2000, com a criação da Comissão de Saúde LGBT do governo federal, e que foi maturando com os anos, até se tornar uma portaria do Ministério da Saúde em 2011.

Essa política foi de grande valia para o movimento LGBTI+ e para a política de saúde como um todo, porque ela inseriu a população LGBTI+ no foco do sistema. Não que antes pessoas LGBTI+ não tivessem acesso ao sistema de saúde ou não fossem atendidas, mas uma série de situações de discriminação as excluíam desse espaço. A política de saúde integral busca garantir que o sistema proteja e respeite o público LGBTI+.

Na prática, ela estabelece, por exemplo, que a população trans seja atendida pelo nome social. Ela também define que a população LGBTI+ se informe em relação à própria saúde e que os profissionais do setor tenham formação para lidar com o grupo. Infelizmente, nossa formação na área de saúde é muito heteronormativa. Médicos às vezes pressupõem que seus pacientes são sempre heterossexuais, ou que mulheres lésbicas não precisam fazer certos exames ginecológicos, por não fazerem sexo com penetração. Esses pensamentos revelam preconceitos e podem levar pessoas LGBTI+ a não procurarem o sistema de saúde. A política que temos busca garantir essa inclusão, embora ainda existam falhas.

Em sua pesquisa de mestrado, o sr. avaliou o processo de construção dessa política, da criação do SUS ao que temos hoje. Como esse processo aconteceu?
CEZAR NOGUEIRA: As políticas não são dadas: são conquistadas a duras penas pelos movimentos sociais. O caminho foi longo para que a gente pudesse ter hoje uma política de saúde para a população LGBTI+ — assim como temos para mulheres, para negros e negras, entre outros. No caso da saúde, porém, a população LGBTI+ partiu de uma situação muito específica. Da década de 1980 aos anos 2000, o sistema de saúde via esse grupo apenas pelo olhar do HIV/aids. Tudo que se voltava a pessoas LGBTI+ era ligado a esse tema.

Com os anos, a população LGBTI+ começou a debater esse quadro, falando sobre outros temas ligados à saúde, como a discriminação e o preconceito no serviço público. Outros movimentos, como o de mulheres, também passaram a falar do tema. A própria gestão do corpo da mulher na medicina foi questionada. Na década de 1990, as paradas do movimento LGBTI+ e novas organizações da sociedade civil projetaram essa população como movimento social relevante. Em 2002, o Programa Nacional de Direitos Humanos do governo federal passou a incluir esse público, e em 2004, o governo [Luiz Inácio] Lula [da Silva, do PT] criou o Brasil Sem Homofobia, uma carta de intenções que fez com que uma série de órgãos passassem a pensar em como atender à população LGBTI+.

Passamos a ser incluídos nas políticas públicas de saúde — em 2006, o Conselho Nacional de Saúde incluiu um representante LGBTI+ — e a discutir com a sociedade civil como melhorar a experiência no SUS (Sistema Único de Saúde). Por mais que o sistema seja universal, integral e gratuito, pessoas LGBTI+ sofriam discriminação, como eu disse, e ficavam aquém desse atendimento. Em 2011, depois de uma série de discussões, o governo federal criou a política que temos hoje. É um histórico de muita luta.

Outras portarias falavam de saúde LGBTI+ antes de 2011, como a do processo transexualizador do SUS e a que garantia o uso do direito ao uso do nome social para travestis e pessoas transexuais. Mas em 2011 conseguimos revisar esses programas e reorganizar o sistema. Outras políticas do SUS passaram a olhar também para o público LGBTI+.

Quais são os cuidados específicos de saúde sexual e reprodutiva de que a população LGBTI+ precisa? Em que medida eles se diferem dos cuidados para pessoas heterossexuais e cisgênero?
CEZAR NOGUEIRA: É importante notar que o cuidado com a saúde da população LGBTI+ tem especificidades. Mulheres lésbicas, por exemplo, usam outro tipo de proteção contra ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) que não o preservativo masculino. Mas, na realidade, o movimento LGBTI+ não busca cuidado específico ou atendimento especializado — mas inclusão na atenção básica, na atenção especializada, nos serviços comuns do sistema de saúde, que são fundamentais para todos nós.

Existem hoje deficiências na formação dos profissionais de saúde, que em parte não entendem a importância da sexualidade para a saúde humana. Quando todos compreenderem a diversidade sexual e de gênero que existe na sociedade, e quando a população LGBTI+ for atendida com cuidado e acolhimento, toda a população também irá se beneficiar. Se esses profissionais se sensibilizarem para um grupo, eles também vão atender melhor a todos os outros.

Mesmo que exista uma política específica, é frequente a insatisfação de pessoas LGBTI+ com o sistema de saúde. Quais são os desafios para que esse grupo tenha os cuidados garantidos?
CEZAR NOGUEIRA: O principal problema que temos hoje é que, apesar de termos uma política de saúde para a população LGBTI+, em alguns casos ela só fica no papel. Na falta de medidas que aperfeiçoem essa política, vemos ainda casos de discriminação, falta de preparo e ausência de ações específicas no sistema de saúde para certos grupos dentro da população LGBTI+.

Mulheres lésbicas, por exemplo, sofrem risco de contaminação por ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), mas há médicos que não sabem disso. Existe distribuição de preservativos masculinos, mas não de femininos. Por orientação do profissional de saúde, parte dessas mulheres deixa de fazer exames como o papanicolau ou o toque de mama e acabam descobrindo tardiamente doenças que poderiam ter sido tratadas com antecedência.

Homens gays também sofrem discriminação. Quando chegam ao sistema de saúde, a tendência é que sejam interpretados como heterossexuais, o que pode deixá-los acanhados para se abrir sobre sua sexualidade. Por outro lado, quando os profissionais sabem que são gays, podem também direcionar o cuidado terapêutico apenas para HIV/aids, quando essa não é necessariamente sua realidade.

Homens e mulheres trans também sofrem muita discriminação quando se trata do nome social. Embora muitas clínicas o usem e o respeitem, quando um médico precisa encaminhar seu paciente para outro profissional, por exemplo, o sistema — não o de saúde, mas o de computador — que gera esse encaminhamento permite apenas o uso do nome civil. O paciente acaba precisando revelar o nome civil, o que é uma violência.

Esses tipos de situação podem fazer com que pessoas LGBTI+ deixem de se abrir para seus profissionais de saúde ou mesmo procurar o serviço. Nesse contexto, podem surgir outros agravos — caso essas pessoas estejam doentes —, como exposição a riscos de ISTs, entre outras coisas. Em último grau, essa população acaba buscando outras pessoas LGBTI+ para terem acesso a cuidados, ou a meios como a automedicação. Existem inúmeros casos de pessoas trans que usam hormônios indiscriminadamente, sem acompanhamento médico, para modificação corporal, porque não conseguem acompanhamento no serviço público. Carecemos de medidas que deem vazão a certas demandas.

Precisamos de estratégias para tirar nossas políticas do papel: criar novas normativas, procedimentos, ampliar a formação acadêmica dos profissionais de saúde. Não diria que precisamos de novas políticas para passarmos por esses problemas, mas fazer valer as que já existem.

A população LGBTI+ é muito heterogênea. Do ponto de vista do acesso à saúde, o sr. acredita que há grupos mais marginalizados que outros? Por que isso ocorre?
CEZAR NOGUEIRA: Sim. Homens e mulheres bissexuais, por exemplo, são muito marginalizados, quase invisibilizados nos serviços de saúde. Homens trans, também. A população travesti é muito estigmatizada e quase não é acolhida. Precisamos disponibilizar outras estratégia de cuidado para grupos como esses.

Não se trata apenas de uma questão de acessibilidade do serviço para esse público. Para evitar discriminação e constrangimento, pessoas trans, por exemplo, às vezes evitam espaços públicos de uso coletivo, especialmente nos horários em que há mais gente. O serviço de saúde precisa estar de portas abertas em horários alternativos para dar mais oportunidades para que essas pessoas o acessem.

Qual a relação entre acesso à saúde sexual e direitos reprodutivos? Na sua opinião, a população LGBTI+ tem esses direitos garantidos?
CEZAR NOGUEIRA: Apesar de o Conselho Federal de Medicina estabelecer que os procedimentos para inseminação artificial podem ser utilizados pelos serviços públicos, inclusive para os casais e as pessoas LGBTI+, não temos serviço público ou programa que garanta a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos dessa população, especialmente nos casos de casais formados por dois homens ou duas mulheres, que costumam recorrer à reprodução assistida [como inseminação artificial e barriga solidária].

Essa falha, na verdade, não se limita à população LGBTI+. É uma carência geral do serviço. Nem casais heterossexuais conseguem ter acesso a políticas de reprodução assistida no serviço público. Esse serviço costuma estar em clínicas particulares, que cobram caro. Precisamos construir políticas de reprodução assistida não apenas para pessoas LGBTI+, mas para todos — e, no processo, nos lembrarmos de incluir a população LGBTI+.

Construir famílias homoparentais com laços consanguíneos é muito importante para essa população. No contexto que temos hoje, porém, casais gays ou de mulheres lésbicas e bissexuais acabam recorrendo a alternativas nem sempre seguras, na falta de serviços no sistema público. Recorrem a amigas [para barriga solidária, no caso de casais de homens], a familiares, a procedimentos caseiros de inseminação artificial [no caso de casais de mulheres]… Ficam vulneráveis a eventuais problemas de saúde e também a problemas jurídicos, caso as pessoas que tenham feito parte desse processo [o doador de esperma, por exemplo] peçam para serem incluídos como pais das crianças. Se não há políticas de saúde, tampouco há políticas legais para que casais homoafetivos construam sua família com facilidade.

Precisamos de políticas de planejamento familiar e reprodução assistida no SUS para isto — para que a população LGBTI+ seja acolhida no seu desejo de criar filhos, sem recorrer a procedimentos duvidosos ou abandonar seus sonhos por não conseguirem custear clínicas particulares.

Em 2018, Jair Bolsonaro foi eleito com uma agenda abertamente contra os direitos da população LGBTI+. O que mudou nas políticas de saúde sexual e reprodutiva para o grupo em seu governo?
CEZAR NOGUEIRA: Eu não diria que mudou, mas tivemos poucos avanços. Felizmente, não tivemos retrocessos com o governo atual, porque tivemos vitórias no Judiciário. Em julgamentos nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal garantiu a união civil, o direito ao nome social, permitiu que a população LGBTI+ doasse sangue, equiparou a homofobia ao crime de racismo, entre outros exemplos. Essas vitórias construíram uma barreira que impediu que o governo retroagisse em determinadas políticas públicas.

O quadro ainda é frágil. Não temos no país nenhuma legislação a nível federal que proteja a população LGBTI+. Temos políticas criadas com base em normas infralegais [como portarias] criadas pelo Poder Executivo, desde a época do Brasil Sem Homofobia, no governo Lula. Bolsonaro teve pouca chance de interferir diretamente em algumas dessas normativas. Mas não conseguimos avançar. Bolsonaro difunde falsamente uma ideia de “ideologia de gênero” que não existe, em uma cruzada contra os direitos das mulheres e da população LGBTI+. Como resultado, temos políticas, mas elas não se efetivam na prática. Para mim, o maior prejuízo do atual governo é justamente trabalhar para que elas não andem.

Independentemente do governo que virá, o desafio será construir mais estratégias para que as políticas conquistadas se tornem efetivas. Ou que ainda se ampliem — infelizmente, a política LGBTI+ do país ainda não inclui homens e mulheres queer, intersexuais e assexuais, por exemplo. Precisamos de novas normativas, capacitação [de profissionais], pesquisa e produção de dados para isso acontecer.

O que a população LGBTI+ pode fazer individualmente para cuidar de sua saúde sexual e reprodutiva diante desses desafios?
CEZAR NOGUEIRA: Procurar o serviço de saúde. Essa é a melhor orientação que posso dar. Precisamos usar esses espaços, fazer com que nos vejam e nos reconheçam como seus usuários. No primeiro momento, é difícil: o profissional de saúde pode não saber o que fazer, ele pode errar. Mas só a presença da população LGBTI+ no sistema faz com que as coisas se modifiquem. Depois de errar, esse profissional pode buscar conhecimento para atender melhor.

Aliás, a população LGBTI+ precisa estar presente não só nas consultas médicas, mas nos conselhos de saúde, nos colegiados das clínicas de saúde da família e no debate para a construção de políticas públicas. Os serviços de saúde devem ser espaços de acolhimento e de proteção. Esse é o principal cuidado que a população pode ter com sua saúde sexual e reprodutiva. Não adianta achar que o sistema vai mudar sozinho — é preciso fazer pressão para que ele mude.

No SUS, a maioria dos profissionais está disponível e atenta para atender melhor ao público, incluindo a população LGBTI+. Pesquisas que fiz recentemente para o doutorado mostraram isso. Usuários e profissionais do sistema de saúde estão abertos a esse encontro. Precisamos agora nos encontrar.