Uma década depois do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da união civil entre pessoas do mesmo sexo, o Brasil ainda patina na aprovação de leis que afastem os obstáculos para adoção de crianças por casais LGBTQIA+.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define que os requisitos para a adoção no Brasil são: ter mais de 18 anos; não ser ascendente ou irmão do adotando; ser casado civilmente ou manter união estável, no caso de adoção conjunta; ter, ao menos, 16 anos a mais que o adotando.

Com base em tais condições, não há impeditivo legal para adoção por casais do mesmo gênero, desde que se regulamentou a união estável e o casamento civil. Antes do marco de 2011, a questão era tratada com base na jurisprudência de casais que haviam conseguido o direito. Até hoje, porém, não há norma expressa sobre a adoção por casais homoafetivos.

Segundo um levantamento feito pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, existem quase 34 mil crianças e adolescentes abrigadas em casas e instituições de acolhimento no país, no entanto, até o último ano apenas cerca de 3.770 crianças e adolescentes estavam aptas e devidamente regularizadas na fila nacional de adoção para receber uma família, a mesma pesquisa apontou que haviam 46.390 pessoas interessadas em adotar, mas menos de 45% dos jovens e adolescentes puderam de fato ganhar um lar.

Judicialização da adoção e do afeto 

Para a assistente social Gabriela Elias, o conservadorismo é um dos impedimentos para adoção. “Temos um poder judiciário e um sistema de justiça brasileiro em geral muito conservador até hoje, então sempre que é pensado no melhor interesse da criança, infelizmente nos deparamos com profissionais que deixam de lado a sua ética profissional e passam a atuar por meio dos seus valores pessoais’’.

Ela, que trabalha na região metropolitana de São Paulo, contou ver de perto muitas decisões arbitrarias por parte dos profissionais que estão ali representando o magistrado de achar que a criança ou o adolescente mereça apenas um lar de casais heterossexuais. “Essa postura não é somente conservadora, mas preconceituosa e geralmente tem raízes religiosas.”

“Essa mistura da posição enquanto profissional de se fazer valer cumprir a legislação com os valores morais que se têm em suas vidas é o principal motivo pelo qual alguns casais homoafetivos ainda encontram barreiras para realizar adoção, mesmo que eles não tenham nenhum tipo de preconceito com relação a perfil do adotado’’, afirmou.

O advogado e professor de direito Mozart Morais, mestre em direitos humanos, explica que não há no sistema judiciário qualquer dispositivo legal que impeça que a adoção seja feita por casais homoafetivos. O cidadão brasileiro tem como garantia que todas as decisões sejam motivadas, mas concorda que o conservadorismo excessivo do judiciário brasileiro é um fato.

“O direito tem como função um tratamento humano acima de qualquer coisa, em casos de adoção o que vigora é a afetividade e as condições objetivas que o adotante tem para conduzir uma família, mas o conservadorismo do judiciário é uma realidade!”

Seleção discriminatória

Gabriela explicou que o processo de adoção no Brasil tende a ser burocrático por uma série de fatores. Durante sua jornada profissional no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), no CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) e também no Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes direcionadas para adoção, ela observou que o que é levado em consideração são as condições emocionais e financeiras no processo de adoção, no entanto, há uma listagem na qual os mesmos podem estipular quais são as suas preferências físicas e psíquicas em relação a criança ou adolescente que deseja adotar. Seleção essa que Gabriela considera muito cruel, pois as crianças rejeitadas geralmente são crianças de grupos vulneráveis, como as crianças negras e deficientes.

Na contramão

Ernandes Ferreira e João Carlos são exemplos de quem foi na contramão disso, abraçando seus filhos com amor sem amarras. Casados há 7 anos, são pais do casal de gêmeos Ismael e Ezequiel. Eles contam que ambos tinham o interesse de serem pais desde que se conheceram e então optaram pelo caminho da adoção.

“Nosso perfil era de 0 a 10 anos, até dois irmãos, sem distinção de raça, etnia, sexo e doenças. Estávamos na posição 17 na fila, porém as 16 famílias que estavam na nossa frente optaram por não os adotar eles já que o Ezequiel estava abrigado e Ismael na UTI sem perspectivas de vida e com diagnóstico de paralisia cerebral.’’

Ernandes diz que não passaram por qualquer situação homofóbica neste processo, mas acredita que exista sim muito preconceito nos dias de hoje. Para ele, o preconceito está por todo lado, surge da sociedade, da família, escola, trabalho e da falta informação.

“Na verdade, a nível de lei, a adoção está para todos sem distinção, o que falta é informação!”

A especialista Gabriela Elias também acha que o acesso a informação seja o caminho para resolução dos problemas existentes. “É preciso espaços de debate para que as pessoas possam compreender que essa questão é estrutural’’, opinou. “Precisamos de alguns avanços nos poderes legislativo e executivo em realmente implementarem políticas sociais e os serviços qualificados que já estão assegurados na legislação e nos serviços qualificados no Estatuto da Criança e do Adolescente.”

Desinformação e preconceito

“Quais são as consequências à criança se ela for criada por gays?”. Essa é a primeira pergunta que pode surgir na cabeça das pessoas. Seja um pensamento inocente ou preconceituoso ele acaba acontecendo, pois as pessoas ainda não estão acostumadas com isso. Aliás, estudos indicam que praticamente não há mudanças na personalidade das crianças que foram criadas por pais gays e héteros.

Nesse sentido, a professora de psiquiatria da Universidade da Virginia, Charlotte Patterson, em matéria da Superinterresante, explica “as pesquisas mostram que a orientação sexual dos pais parece ter muito pouco a ver com com o desenvolvimento da criança ou com as habilidades de ser pai. Filhos de mães lésbicas ou pais gays se desenvolvem da mesma maneira que crianças de pais heterossexuais”.

No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou 60 mil casais homoafetivos vivendo junto no país no Censo de 2010. E, a primeira adoção por casal homoafetivo no Brasil ocorreu somente em 2005, na cidade de Catanduvas (SP).

Em entrevista para a revista Crescer, a terapeuta em orientação sexual e presidente da Associação Brasileira de Pais e Mães Homossexuais, Edith Modesto comentou que a adoção homoafetiva é benéfica por vários motivos.

“Na hora da adoção, por exemplo, eles não fazem as exigências que normalmente são feitas por outros casais, como idade, cor ou sexo. Afinal quem já sofreu a discriminação na própria pele, não quer que uma criança passe por isso”, afirma a terapeuta.

Apesar de as decisões do STF e de outros órgãos competentes terem garantido direitos à comunidade LGBTQIA+, os tópicos não foram inseridos na Constituição. Um dos projetos que tramita no Congresso e que propõe consolidar diversos direitos à população LGBTQIA+, como direitos à Convivência Familiar, à Parentalidade e à Identidade de Gênero, é o PLS nº 134/2018, que institui o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero. Com autoria no Senado, o projeto está paralisado desde 2019, quando foi distribuído ao senador Paulo Rocha (PT-PA) para emissão do relatório.

A adoção por casal homoafetivo no Brasil é um marco importante. O afeto é o principal componente da formação do núcleo familiar e imprescindível para o sucesso da adoção.  Nesse sentido, será também um aliado importante na luta contra os preconceitos, porém, o acompanhamento psicológico ajuda a lidar melhor com as situações desconfortáveis.

Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Assistente social Gabriela Elias assistentesocialfcilitando@gmail.com

Advogado Mozart Morais adv@mozartmorais.com.br