O Brasil registrou em 2019 um total de 41.919 novos casos de infectados pelo HIV, número 7% menor que as 45.078 novas infecções do ano anterior. A maior parte do contingente de novos infectados, no entanto, se concentra em um segmento que não chega nem a 10% da população brasileira: a de homens gays e bissexuais. Para especialistas, isso pode ser um indício de que a epidemia está aquecida dentro desse público.

Os dados foram divulgados nessa terça-feira (1º) pelo Ministério da Saúde, durante o lançamento da Campanha de Prevenção ao HIV/aids, em celebração ao Dia Mundial de Luta Contra a Aids. A atual campanha tem como slogan “HIV/aids. Faça o teste. Se der positivo, inicie o tratamento”.

De acordo com o boletim epidemiológico anual sobre HIV/aids elaborado pela pasta, dos 41.919 novos casos de HIV registrados ano passado, 51,6% concentram-se entre homens homossexuais e bissexuais, diante de 31,3% entre heterossexuais e 1,9% de usuários de drogas injetáveis (UDI). Entre as mulheres, 86,6% dos casos se inserem na categoria de exposição heterossexual, e 1,3%, na de UDI.

De 2007 a junho deste ano, aponta o documento, foram notificados no Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) 342.459 casos de infecção pelo HIV no Brasil, dos quais 44,4% (152.029 casos), na região Sudeste, 20% (68.385) na região Sul, 19% (65.106) na região Nordeste, 9% (30.943) na região Norte e 7,6% (25.966) no Centro-Oeste. A maior parte dos quase 42 mil novos casos de 2019 se concentra no Sudeste —14.778 casos (35,3%).

Até junho passado, a maioria dos infectados pelo HIV estava no grupo de 20 a 34 anos, com percentual de 52,7% dos casos.

Casos de aids

Os números também apontaram queda no número de casos de infecção por Aids nos últimos anos: de 2012 para 2019, o Ministério da Saúde identificou no país uma diminuição na taxa de detecção da doença de 21,9/100 mil habitantes para 17,8/100 mil habitantes, um decréscimo de 18,7%.

“Embora se observe uma diminuição dos casos de aids em quase todo o país, principalmente nos últimos anos, cabe ressaltar que parte dessa redução pode estar relacionada à identificação de problemas de transferência de dados entre as esferas de gestão do SUS, o que pode acarretar diferença no total de casos entre as bases de dados municipal, estadual e federal de HIV/aids”, salienta o boletim, que complementa: “O declínio no número de casos também pode decorrer de uma demora na notificação e alimentação das bases de dados do Sinan, devido à mobilização local dos profissionais de saúde ocasionada pela pandemia de covid-19”.

Mesmo assim, a taxa de detecção da doença segue em alta, entre homens, nas faixas etárias mais jovens. Comparando-se os anos de 2009 e 2019, por exemplo, a taxa cresceu de 3,7% para 6,1% na faixa de 15 a 19 anos; na faixa de 20 a 24 anos, evoluiu de 20,6% para 36%; de 25 a 29 anos, foi de 41,3% para 52%. Entre homens com 60 anos ou mais houve avanço, também, ainda que em menor escala: passou de 11,6% em 2009 para 12,2% em 2019.

Ainda conforme o boletim epidemiológico de 2020, a taxa de mortalidade por aids, no geral, registrou queda: índice de 17,1% nos últimos cinco anos. Apesar disso, chegou a 10.565 o número de pessoas que morreram em decorrência da doença ano passado, no Brasil (12.667 óbitos em 2015).

No recorte racial, as mortes notificadas no ano de 2019 atingem majoritariamente pessoas negras: 61,7%, (47,2% pardos e 14,5% pretos), com 37,7% de mortes entre brancos, 0,3% entre amarelos e 0,3% entre indígenas.

As mais afetadas, entretanto, são as mulheres negras: 62,1% morreram, ao passo que, entre homens negros, o índice ficou em 61,4%. Na comparação entre os anos de 2009 e 2019, por sinal, verificou-se queda de 21% na proporção de óbitos de pessoas brancas e crescimento de 19,3% na proporção de óbitos de pessoas negras, conclui o boletim.

Para o Ministério da Saúde, no entanto, ações como a testagem para a doença e o início imediato do tratamento, em caso de diagnóstico positivo, foram “fundamentais para a redução do número de casos e óbitos”.

“Garantimos tratamento mesmo em época pandêmica. Não faltou medicação, testes rápidos de HIV ou preservativos. Garantimos a contínua dispensação de medicamentos para o tratamento desse paciente”, destacou o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, no evento de divulgação dos dados.

O diretor do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, Gerson Pereira, por sua vez, observou ter havido ganhos graças ao diagnóstico precoce da doença.

“Em 2019, cerca de 135 mil brasileiros não conheciam seu diagnóstico. Hoje esse número reduziu a menos de 100 mil. Isso mostra que estamos buscando cada vez mais o diagnóstico”.

A pasta destacou ainda algumas ações adotadas durante a pandemia de covid-19 em relação especificamente aos pacientes com HIV/Aids. Entre essas medidas, foram destacadas a expansão da estratégia da dispensação ampliada de antirretrovirais —antes de 30 dias, foi expandida para 60 ou até 90 dias— e a ampliação do uso de autotestes nacionalmente, a fim de se reduzir o impacto na identificação de casos de HIV por conta da pandemia. Em 2018, foram 17.365 autoestes; em 2019, 203.526; este ano, até outubro, 173.837.

Este ano, a campanha incentiva a busca pelo diagnóstico e tratamento da doença e reforça que a camisinha “é a forma mais fácil e simples de se prevenir contra o HIV”, embora, se a pessoa não tiver utilizado camisinha, seja de extrema importância realizar o teste de HIV, gratuito no SUS (Sistema Único de Saúde).

Percentual de infecções em gays e bissexuais “é gritante”

Rico Vasconcelos, infectologista no SEAP/HIV, o ambulatório especializado em HIV do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), destacou, a partir do boletim, que é entre os homens mais jovens, na faixa de 15 a 29 anos, onde a epidemia tem acelerado de forma mais intensa nos últimos anos.

Entretanto, ele ressalvou: dada a população de homens gays e bissexuais no Brasil —”algo entre 6% e 10%”, destacou—, 51,6% deles entre os novos infectados de HIV “mostra o quão gritante é esse dado, pois, ao que parece, tem-se uma epidemia super aquecida nesse segmento”, definiu.

“Importante ainda destacar que a aids mata mais de 10 mil pessoas ao ano no país. E justo no Brasil, onde essa doença dispõe de tratamento público, gratuito, via SUS. Ainda é muita gente morrendo”, avalia o infectologista, que lembra de uma série de outras estratégias de prevenção para além da camisinha, entre as quais, as profilaxias pré e pós-exposição, respectivamente, PrEP e PEP.

“Muita coisa mudou no mundo da prevenção, mas o Ministério da Saúde parece ter parado no tempo ao insistir nesse discurso noventista [ou seja, alusivo à década de 1990] e simplista do ‘use camisinha’. O melhor argumento para embasar essa crítica, aliás, é o boletim 2020 de São Paulo, cidade que se descolou do argumento único da camisinha, desde 2017, para se investir em todos os todos os elementos da prevenção combinada, que, juntos, têm diminuído o número de novos casos”, mencionou.

Na capital paulista, segundo o boletim epidemiológico divulgado também nessa terça, foram registrados 2.946 novos casos de HIV, 11,7% a menos do que no ano anterior, quando houve 3.340 registros. Se a comparação for com 2017, a diminuição chega quase aos 25%, já que, naquele ano, haviam sido notificados 3.889 casos de HIV.

Na avaliação de Vasconcelos, falta também uma campanha capaz de atingir a população-chave mais vulnerável, ou seja, homens gays e bissexuais. “É nítido que a ausência de campanhas para esse público LGBT é um dos motivos pela não queda dos casos nessa população”, concluiu.

Gestantes: aumentam as detecções de HIV

O país teve 134.328 notificações de gestantes infectadas com HIV de 2000 a junho deste ano; 8.312 apenas em 2019. Em dez anos, houve um aumento de 21,7% na taxa de detecção de HIV nesse público (de 2,3 casos/mil nascidos vivos em 2009 para 2,8/mil nascidos vivos em 2019). De acordo com o boletim, o aumento “pode ser explicado, em parte”, pela ampliação do diagnóstico no pré-natal e a melhoria da vigilância na prevenção da transmissão vertical do HIV.

“Tivemos a erradicação da transmissão vertical [de mãe para filho] de HIV em São Paulo em 2019; não era para ter nenhum caso também no Brasil. Mais mulheres estão vivendo com HIV sem ter feito diagnóstico e acabam sabendo no dia do parto”, ponderou o infectologista.

“Algo não está funcionando”

Salvador Campos Corrêa, ativista e consultor sobre HIV/aids, psicólogo e sanitarista apontou a marca de um milhão de casos acumulados de Aids, desde 1980, que o Brasil atingiu com o boletim epidemiológico deste ano.

Ele analisa: “Importante trazer à reflexão quem está mais vulnerável à mortalidade por aids: em 2019, 61,7% de todos os óbitos foram de pessoas negras, especialmente mulheres negras. Por que essa parte da população morre mais pela doença? Será que o acesso a tratamento e diagnóstico está de fato ocorrendo? O que ocorre, sim, é que muitas vezes eles morrem por não terem sido diagnosticados”, define.

Mesmo na série histórica, a prevalência de HIV é mais alta em mulheres negras. Algo não está funcionando.

Membro da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV (RNP+Brasil) e autor do livro “Segundo Armário” (Editora Autografia), Corrêa destaca que ainda é alto, na casa dos 81,8%, segundo pesquisa recente do Unaids, o índice de pessoas com HIV pesquisadas que se sentem estigmatizadas por conta da infecção pelo vírus.

“Ao menos 75% dessas pessoas escondem que são soropositivas; isso ainda é um tabu. Se o governo não considerar esses aspectos sociais em suas campanhas, fica mesmo difícil controlar a epidemia”, analisa. “Não podemos cair no discurso fácil de que a epidemia está diminuindo.”

Fonte: Viva Bem (UOL)