“Se o homem pudesse abortar, o aborto já teria sido legalizado há muito tempo”; “Você está tão condicionada a não fazer parte da sociedade, que chega um momento que se acostuma com isso”; “Ser mulher e negra é dar a cara para bater todos os dias”; “Tem muita mulher morrendo em decorrência da aids por conta do machismo estrutural”. As frases acima foram ditas nesse domingo (8), Dia Internacional da Mulher, na segunda roda de conversa do auditório público “Mulheres e suas muitas dimensões”. O debate reuniu mulheres que lutam diariamente pela garantia dos direitos humanos e sentem na pele o desafio de ser mulher, como a jovem ativista do movimento negro Jaqueline Lima, mãe do Heitor. “Sou negra, o pai do meu filho é branco e meu filho é pardo, inúmeras vezes me perguntaram se ele realmente era o meu filho. Isso doí na alma, faço questão de responder que além de ser meu, se parece muito comigo.” O dia a dia de Jaqueline é vivenciado diariamente por mulheres negras que vivem nos guetos, sofrem violências e enfrentam estruturas racistas, patriarcais, sexistas e heteronormativas.

Jaqueline elegeu a mãe como referência de mulher: ela sempre me incentivou a seguir em frente

Segundo dados do Atlas da Violência, o Brasil tem 13 homicídios de mulheres por dia, e maioria das vítimas é negra. O Atlas calcula que aumentou em 20,7% a taxa nacional de homicídios femininos entre 2007 e 2017. Esse aumento se dá sobretudo entre mulheres negras: elas viram seu número de homicídios crescer mais de 60% em uma década, em comparação com um crescimento de 1,7% nos assassinatos de mulheres não negras. “Às vezes ficamos tão acostumadas com a violência que passamos a duvidar da nossa capacidade intelectual. Aconteceu comigo no meu trabalho. Subi de cargo no primeiro mês de casa e por várias vezes me questionei se merecia a vaga.”

Representando a voz das mulheres com deficiência, a jornalista Jéssica Paula usa suas muletas para se locomover e inspirar outras mulheres a ter autonomia. Ela coleciona histórias incríveis que vivenciou pelo mundo fazendo mochilão, já esteve em mais de 34 países. Sinônimo de superação, ela perdeu os movimentos da perna aos seis anos, quando teve uma infecção de garganta que migrou e infeccionou a medula. “Parei de andar. Precisei reaprender a sentar, a engatinhar e, finalmente, voltar a caminhar com ajuda de um andador.”

 Jéssica disse que a mídia seria uma boa parceira na luta por direito das mulheres com deficiência

Isso tudo foi mais fácil porque teve ajuda da mãe. “Meu primeiro desafio foi conseguir andar em volta do quintal de casa sozinha. Minha mãe estava ao meu lado e me incentivou muito.” Mas essa não é a realidade desta população. Segundo Jéssica, o processo de marginalização da pessoa com deficiência começa na família. “O dilema é que eles querem proteger e acabam negando muitas vezes a liberdade de sair de casa. Podemos sim movimentar o corpo e descobrir a capacidade que ele tem. Não adianta, por exemplo, termos ciclovias em São Paulo e não termos rampas para os deficientes físicos ocuparem as ruas da cidade. Uma vez um senhor me perguntou se por causa da minha deficiência física eu poderia ter filhos. Eu respondi que sim. Então ele disse: que bom. Menos mal. Assim você vai cumprir seu papel na sociedade. Caminhando pelo mundo descobri que ninguém pode definir qual é o meu papel na sociedade.”

Regiane contou que em seu consultório sempre aconselha as mulheres a ser independentes  

A sexóloga e psicóloga Regiane Garcia também participou do debate e defendeu o empoderamento emocional da mulher. “Existe a questão da deficiência, da cor, da aids e também da estética. Acompanho muitas mulheres brancas, muitas vezes de classe média e que sofrem com a questão da pressão estética. A gente precisa de conhecimento e união entre as mulheres. Temos uma diversidade imensa, por isso vamos a luta para desconstruir o preconceito.” Regiane trouxe para o debate o papel do homem nesta equação. “Não podemos nos esquecer que muitas vezes o homem opressor também é oprimido. Sexualmente eles não se permitem sentir.” Questionada sobre a mulher que a inspirou ser quem é, Regiane elegeu a mãe. “Sou psicóloga por conta da minha mãe. Outra mulher que me inspira todos os dias é a médica Carmita Abdo, psiquiatra e sexóloga brasileira que coordenou o maior estudo sobre sexualidade já realizado no Brasil.”

A poetisa Marina Vergueiro concordou com Regiane quando o assunto é união entre as mulheres. “Temos que ser protagonistas das nossas próprias narrativas. Quero homenagear hoje Marielle Franco, silenciada e assassinada brutalmente por um sistema machista.”

Marina afirmou que ser mulher e viver com HIV/aids é difícil, mas é possível: o preconceito é o maior problema

Marina vive com HIV há sete anos e por muito tempo escondeu sua sorologia por medo do preconceito e da discriminação. “Tinha medo que as pessoas pensassem que eu era uma mulher fácil. Depois entendi que não existe problema nenhum em ser fácil e se relacionar com que você quiser, a vida é minha.” Ela publicou recentemente “Exposta”, um livro de poesias que fala sobre a mulher que vive com HIV, mas também fala sobre gordofobia, sexualidade, romances, reflexões sobre a morte, renascimento, exorcismo, espiritualidade.

O debate foi mediado pela jornalista Roseli Tardelli e ao final ela pediu para cada uma das participantes definir o Dia da Mulher em uma palavra. Jaqueline disse amor, Jéssica escolheu autonomia, Marina preferiu o afeto e Regiane encerrou o debate desejando orgasmo para todas as mulheres.

O evento “Mulheres e suas muitas dimensões” foi uma iniciativa da Agência Aids em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo e contou com o apoio da DKT do Brasil, da Aids Health Care Foundation (AHF) e da Semina.

 

Talita Martins (talita @agenciaaids.com.br)