Quem assistiu a série Pose (2018), um drama criado pelo premiado Ryan Murphy1, observou temas como identidades de gêneros dissidentes, discriminação racial, desigualdade social e a epidemia da Aids, tendo como protagonista Dominique Jackson, que eternizou a personagem Elektra Abundance, reconhecida na comunidade Ballroom internacional como: Legendary Icon Tyra Maison Margiela ou Tyra Allure Ross, se emocionou com as histórias dos personagens que viveram com HIV/Aids dentro da comunidade Ballroom em Nova Iorque entre os anos 1980-1990. Basta lembrar de Pray Tell, interpretado por Billy Porter, que compartilhou publicamente sua sorologia (HIV positivo) influenciado pela série, assim também como a personagem Blanca Rodriguez Evangelista, interpretada pela memorável Michaela Jaé Rodriguez que tornou-se, a partir de sua atuação na série, a primeira atriz trans indicada ao Emmy Award na categoria de Melhor Atriz em 2021 e vencedora do Globo de Ouro no mesmo ano.

A comunidade Ballroom que conhecemos hoje surgiu no final da década de 1960. O início desse movimento pode ser visto no documentário The Queen (1968), no qual Crystal LaBeija se manifesta denunciando o racismo nos concursos de beleza para drag queens. Sua fala de indignação culminou na realização do primeiro baile para drags queens negras e latinas. Crystal fundou a primeira casa, a The Royal House of LaBeija, pioneira nesse formato e responsável por ressignificar o imaginário de família para as pessoas LGBTQIAPN+ que estavam sendo expulsas de seus lares.

É nas periferias de Nova Iorque que as houses se tornaram potentes ferramentas na promoção do acolhimento, entretenimento e enaltecimento de pessoas negras, latinas, LGBTQIAPN+ e HIV positivas.

Segundo Marlon Bailey , os bailes, popularmente conhecidos como balls, estruturam-se como um espaço de apoio e proteção, nas quais são realizadas performances em formato de batalhas, com categorias de beleza, moda, comportamento e dança. Um ambiente em que pessoas marginalizadas têm seus talentos reconhecidos e são celebradas por serem quem são. É na comunidade Ballroom que nasce a dança vogue ou voguing. Segundo Icon Jamal Milan, a dança foi inventada na década de 1970 por Paris Dupree , enquanto folheava a revista de moda Vogue.

Ao perceber as diferentes poses fashion que as modelos faziam, ele decidiu imitar essas poses na batida da música. A dança voguing se desenvolveu, tornando-se a principal referência da comunidade Ballroom e sendo amplamente divulgada pela mídia. Mas é por meio das mulheres trans negras que o voguing se reconstrói em um lugar de performance radical. Este termo foi usado pelos autores Sabel Gavaldon e Manuel Segade ao apontar que as poses fashion ou estilizadas do voguing transcreve uma história de resiliência e lutas culturais de populações marginalizadas que remontam à década de 1920 com as primeiras drag balls surgidas no contexto do movimento social, político e cultural chamado de Harlem Renaissance, quando ocorriam os bailes de máscaras com prêmios concedidos para os melhores trajes. Mas é fundamental citar que as drag balls são resultado das primeiras manifestações ocorridas no século XIX (1842-1869), tendo como uma das suas maiores referências William Dorsey Swann, ou melhor The Queen.

Desde os anos 1980 que a comunidade Ballroom, possui regras elaboradas, estética, forma de organização social própria que desafia as estruturas sociais, e também dialogando com outras movimentações que lutam em defesa de populações em vulnerabilidade, como o movimento social da Aids. Não há como separar a história da Ballroom da epidemia da Aids, uma vez que o vírus impactou tragicamente as populações negra, latina, periférica e LGBTQIPN+ que habitavam os bailes. Essa conexão pode ser vista, em alguns episódios da série Pose, quando o grupo político Act Up se une à comunidade Ballroom a fim de pressionar as empresas farmacêuticas para acelerarem o teste de medicamentos e reduzirem seus custos. Também atuaram tensionando as agências governamentais para que incluíssem as pessoas com HIV/Aids nas discussões e decisões sobre as políticas de saúde. Criticaram a igreja apostólica romana por discriminar pessoas LGBTQIAPN+ com um discurso no qual as culpabilizam pela propagação do HIV.

A GMHC (Gay Men’s Health Crisis) foi a primeira organização internacional de serviços de HIV/Aids, fundada no início dos anos 80, que forneceu insumos para a prevenção e defendeu as pessoas vivendo com HIV/Aids. A partir de um diálogo da GMHC com Lideranças da Ballroom foi criada, em 1990, a House of Latex e, na sequência, a Latex Ball, que até hoje é o principal baile anual da comunidade internacional. Em 2024, a Latex Ball celebrará 34 anos com ações afirmativas na comunidade Ballroom em Nova Iorque. Depois de uma pausa durante a pandemia da COVID 19 e considerando que a cidade foi também uma das mais atingidas pela epidemia da Aids, nos anos 90, foi necessário criar movimentações efetivas dentro de comunidades historicamente marginalizadas. Nesse período, agentes da GMHC passaram a frequentar os bailes, George Bellinger Jr. batizou a House of Latex, mas foi o falecido Arbert Santana quem teve a ideia de criar uma casa e evento dedicado para conscientização da epidemia do HIV/Aids.

Na entrevista para o site The Body, Krishna Stone descreveu o significado do Latex Ball: “Esta é uma intervenção comunitária. Você tem um público cativo de milhares de pessoas, a maioria das quais é desproporcionalmente afetada pelo HIV. De forma consciente e respeitosa é uma forma muito eficaz de divulgação”. Continua Stone: “Embora muitas pessoas venham para se divertir ou/e competir, ainda é uma maneira de envolver as pessoas com as esperanças desses diálogos, dessas breves conversas. Esses momentos vão continuar.”

Atualmente, a Latex Ball evoluiu em um contexto distinto daquele dos anos 90, mas permanece como uma referência histórica na criação de espaços dentro da Ballroom para discutir a questão da epidemia da Aids. A doença continua a afetar especificamente determinadas populações e é ainda utilizada como uma ferramenta de necropolítica, resultando em fatalidades contínuas. Nesse sentido, as balls representam uma resposta poderosa ao vírus do HIV e à epidemia da Aids, oferecendo um espaço de conscientização, apoio e resistência.

Destaco também as ações do Project Vogue acontecidas em 2011, lideradas por pesquisadores de saúde e financiadas pelo Legacy Project of the HIV Vaccine Trials Network (HVTN), sob a liderança do escritório de HIV/AIDS Network Coordination (HANC), ambos financiados pelo National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID) Divisão de AIDS e MOCHA (Men of Color Health Association).

O projeto desenvolveu várias intervenções dentro e fora dos bailes para aumentar o conhecimento sobre métodos de prevenção e pesquisa de vacinas contra o HIV. Uma das ações foi um retiro educacional que reuniu quinze líderes (fundadores, mães, pais, lendas e ícones) em uma série de reuniões que estimulavam o diálogo sobre HIV/Aids, culminando em bailes.

Influenciados por essas ações anteriores, a liderança da comunidade Ballroom brasileira vem propondo diálogos sobre prevenção, reeducação/conscientização sexual, redução de danos e bem viver de pessoas vivendo com HIV, utilizando como ferramenta as houses, as categorias performáticas e as balls. Embora ainda haja um silenciamento das pessoas que vivem com HIV, ainda resultado dos preconceitos e estigmas da epidemia da Aids, ações como o projeto Articulando (2020), uma parceria entre a comunidade Ballroom de São Paulo com a Coordenadoria de IST/Aids em São Paulo, tornaram possível capacitar alguns membros da comunidade local para atuarem como agentes de prevenção, incluindo as figuras pioneiras e lendária, como: Félix Pimenta, Luna Ákira e Biel Lima. Outra ação foi a PositHIVa Ball (2018) no Distrito Federal, realizada pelo Legendary Father Guaja Onija com o suporte da Pioneira Fênix Zion. Até o momento a PositHIVa Ball aconteceu em Alagoas, por meio do Prêmio de Identidade e Diversidade Cultural Alagoana (2021), na Paraíba fomentada pelo Coletivo Loka de Efavirenz (2022) e acontecerá em São Paulo, no dia 08/06, pelo Edital da Coordenadoria de IST/Aids da Secretária de São Paulo. Em Brasília também, surge o Ball For Blood, iniciativa da Pioneira Eduarda Kona Zion, em parceria com o Instituto LGBT+.

É um baile inspirado na frase do Legendary Icon OverallFather Pony Zion, que invoca a estreita relação entre a arte do vogue e toda a força que pulsa em nossas veias. Uma ação recente foi o Festival PosithHIV (Ball Encruzilhadas Positivas) com investimento do Fundo Brasil (2023), realização das Mães Gustava e Pietra da Casa de Laroyê na cena de Goiânia. O objetivo foi construir novos caminhos para se pensar saúde sexual e integral, ISTs, afetividade, trabalho, arte e cultura, além de novos imaginários e políticas públicas acerca de viver com HIV/Aids no Brasil. Houve outras movimentações pelo país abordando o HIV/Aids com foco na comunidade Ballroom, usando ferramentas como: podcast, editoriais de moda e balls.

Pony Zion e do Legendary e pessoa vivendo com HIV na cena Ballroom em São Paulo, Flip Couto. Ele foi uma das primeiras pessoas que, a partir da sua sorologia, provoca reflexões sobre vivência com HIV na comunidade Ballroom. Entre suas ações primárias, está a Ball Anual Vera Verão, realização da Iconic House of Zion no Brasil , na cena Mainstream fundada em 2007 pelo Icon Pony Zion em NYC.

A House of Zion realiza ações afirmativas por meio de balls, performances, ações sociais e culturais. Com membros em Brasília, São Paulo, Manaus, Alagoas, Bahia, Pernambuco, Goiânia e Pará, a house realiza ações como Jam de Vogue, Vogue For Blood e a Ball Vera Verão. Junto com o Coletivo Amem (criado em 2016, o coletivo é formado por artistas, produtores e ativistas negros LGBTQIAPN+ e tem como principal ação a FESTA AMEM, um espaço de circulação de artistas independentes, acolhimento e de transmissão de conhecimentos através da vida noturna).

A Ball Anual Vera Verão é um dos maiores bailes do Brasil e homenageia a personagem interpretada por Jorge Lafond (1952 – 2003), uma bixa preta de grande importância na representação da comunidade negra LGBTQIAPN+ e periférica. Jorge Lafond deixou um legado significativo no teatro, na televisão brasileira e no imaginário de todo o país, desafiando estereótipos e abrindo caminhos para a diversidade na mídia.

A Ball Anual Vera Verão busca não apenas honrar e ressignificar sua memória, mas também explorar as diversas possibilidades de existência de corpos negros, indígenas e dissidentes em diferentes realidades, incluindo das pessoas vivendo com HIV/Aids. Sempre comprometidos em promover os direitos humanos e exaltar vhidas negras/pretas periféricas LGBTQIAPN+, o coletivo e a house vêm levantando importantes pautas que acendem debates sobre raça, classe, gênero, sexualidade, saúde da população preta, HIV e estigma.

Nesta edição, a categoria Vogue Performance com entrada performática nos convida a olhar para 2030, quando Vera Verão está no planeta CURA, onde já existe a cura do HIV, que é disponibilizada para todes. Nessa categoria é preciso se imaginar como viajante do tempo, com apenas uma possibilidade de ir até lá, encontrar Vera e trazer a cura para o ano de 2024 no planeta Terra. A poética e a potência da comunidade Ballroom nos faz criar possibilidades, realidades e futuros possíveis, em um mundo onde a cura da Aids ainda não é possível e ainda afeta populações específicas. É importante reforçar que no dia do baile teremos o apoio da Coordenadoria de IST/Aids, da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, com o projeto PrEP.

Será disponibilizada uma equipe especializada e o público da Ball Anual Vera Verão poderá fazer testagem rápida gratuita para HIV, sífilis, hepatites B e C, e iniciar o uso da profilaxia pré-exposição (PrEP). Haverá, ainda, distribuição de insumos de prevenção, como preservativos e gel lubrificantes.

Fonte: Por Fênix Zion