Em momentos da vida de uma família como o nascimento de um filho, entender o que acontece e ser entendida faz toda diferença. Para um parto respeitoso e sem intercorrências, é fundamental. Mas nem sempre é assim, e a dificuldade é maior quando a mãe e o pai são surdos.

Nos últimos anos, leis que asseguram a presença de intérpretes de Libras nas salas de parto foram aprovadas em vários estados e municípios brasileiros. Na prática, no entanto, a acessibilidade a esse e outros serviços de saúde ainda é limitada para as pessoas surdas.

Há dois anos, quando se preparavam para aumentar a família, a agente técnico-administrativa Yasmim Santana da Silva, de 26 anos, e o auxiliar de documentação técnica Helliton Xavier, de 29 anos, foram conhecer o hospital particular onde planejavam o parto, em São Paulo. E se preocuparam quando ouviram do outro lado que a instituição não oferecia intérpretes de Libras. No caso deles, pais de primeira viagem e surdos de nascença, a mediação linguística foi mais que necessidade: foi urgência de saúde, da mãe e do bebê.

”Foi um susto. Fomos a um ultrassom de rotina e disseram o bebê não estava se desenvolvendo, que estava perdendo peso. Seria preciso tomar uma atitude rápida”, lembra Helliton.

O parto teve que ser adiantado, e Yasmim foi direto para a cesárea. Sem intérpretes no hospital, o casal recorreu a uma colega de trabalho de Helliton, a advogada e tradutora intérprete de Libras Luana Manini.

Luana intermediou desde o atendimento. Teve que falar com o convênio de saúde explicar aos médicos todo o histórico clínico da Yasmim, que é diabética, responder como tinha sido o pré-na tal, se ela tinha alergia, que remédios tomava. Fiquei muito nervoso. Imagina se não tivéssemos essa mediação linguística”, questiona Hellinton.

Foram mais de nove horas de trabalho de parto e de intermediação com plano de saúde, pediatra, anestesista, enfermeira, nutricionista, obstetra.

”Uma hora Yasmim começou a passar mal e a perder os sinais vitais. Tinha relação com a diabete. O médico me pedia para mantê-la acordada. E eu perderia qualquer comunicação se ela fechasse os olhos, porque a libra é visual”.

Ao mesmo tempo, o marido via a movimentação e me perguntava o que estava acontecendo, lembra Luana.

O bebê nasceu saudável, mas ainda foi levado à UTI por conta do baixo peso, outro momento tenso em que a mediação de Luana pôde garantir que os pais entendessem e se tranquilizassem.

AJUDA. Intérprete Luana, com o casal Yasmin e Helliton, no dia do parto

”Sem a interpretação, eu teria ficado totalmente perdida em um momento tão especial”, diz Yasmim.

DIREITOS

Sem intérprete, tampouco teria sido possível conhecer dos próprios pais essa história. Uma história que, apesar do desfecho positivo, não é realidade para boa parte das pessoas surdas no país. Em São Paulo, um projeto de lei que assegura o direito a interpretação de Libras no acompanhamento pré-natal e no parto aguarda votação. No Rio, um PL similar foi aprovado recentemente. Estados como Piauí e Acre também possuem leis do tipo.

Em alguns casos, como em Pernambuco, a contratação dos tradutores intérpretes fica por conta das gestantes, o que já impõe um obstáculo a quem não pode arcar com os custos. Em outras situações, pais são impedidos pelos próprios hospitais a ter intérpretes no momento do parto, mesmo quando a norma determina que a presença do profissional não substitui o direito a acompanhante permitido por lei federal.

Além disso, independentemente da existência de uma lei local, a Lei Brasileira de Inclusão, de 2015, já determina que as parturientes surdas têm direito ao atendimento prioritário e em Libras em serviços de saúde públicos e privados. Ou seja, bastaria que as leis existentes fossem cumpridas.

“Caso ela (a gestante) não indique como acompanhante uma pessoa que possa fazer a tradução/interpretação, entendemos que fornecer esse profissional é responsabilidade do estabelecimento de saúde”, explica em nota o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. No dia a dia, as realidades variam.

”Já soube de médicos que em consulta escreveram na receita: “Da próxima vez, venha com um acompanhante que fale”, conta Luana.

Acontecem situações desse tipo. Ao mesmo tempo, o direito a ter intérpretes vai além de uma mobilização linguística. É tornar presente a decisão do surdo linguisticamente. É um pai poder opinar sobre a ida do filho à UTI. É uma mãe poder dizer que não quer cesárea, que quer um parto humanizado. São questões importantes que muitas vezes a sociedade desconhece.

MOMENTO ÚNICO. Na sala de parto, a comunicação sobre saúde de mãe e bebê é fundamental e pode ser desafio para pessoas surdas

E a barreira linguística não acaba depois que o bebê nasce. Ainda vêm as consultas, os exames, algum tratamento.

”O acesso aos serviços de saúde ainda precisa melhorar muito e ser ampliado. Uma amiga grávida contou que o hospital dela já disse que não tem intérpretes. Outros amigos já contaram de hospitais que os proibiram de ter, ou que permitem apenas familiares”, conta Yasmim.

”Muitas vezes os parentes resumem as informações. Quero entender por que precisa de soro, por que tal remédio, qual é a indicação. Não quero algumas informações, quero todas. Eu sou mãe.”

POR APLICATIVO

Muitas vezes, na ausência de um serviço presencial, as pessoas surdas recorrem a atendimentos remotos. Em janeiro, a intérprete de Libras Rayane de Oliveira fez a mediação linguística de um parto por meio de um aplicativo chamado Icom.

”O pai ficava com o celular o tempo todo na mão, e fiz a intermediação com a equipe médica por videochamada. Explicava sobre dilatação, soro, indicava as posições para facilitar o encaixe do bebê”, lembra.

Rayane aprendeu Libras desde pequena. Era a comunicação natural em casa, por conta da irmã mais velha, que nasceu surda. Com ela, e nas interpretações profissionais de Libras, conheceu de perto os desafios dos surdos na esfera da saúde.

”Há médicos que às vezes não aceitam a mediação remota. Alguns alegam questões éticas, e o surdo fica à mercê da autorização do médico que está no plantão”, conta.

”Minha irmã é um exemplo. Às vezes, em consultas, se comunica com médicos pela escrita. Muitas vezes me liga por videochamada, quando não consegue pelo aplicativo. O Icom atende o Brasil todo, então às vezes há fila para o atendimento. Há percalços desse tipo.”

Na rede pública de saúde, existem serviços como os das Centrais de Interpretação de Libras (CIL), que oferecem intérpretes de Libras presencialmente ou por meio de um aplicativo. O serviço é fomentado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, mas funciona sob regras próprias estabelecidas pelos municípios ou estados que se mantêm.

Na cidade de São Paulo, onde moram mais de 120 mil pessoas surdas, o serviço tem o nome de Central de Intermediação em Libras (CIL).

De acordo com a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência, a capital tem 289 postos de atendimento presenciais as áreas de saúde, assistência social, educação, etc.

Segundo a pasta, o serviço também funciona por aplicativo, 24 horas por dia.

 

 

Fonte: O Globo