Com a Covid-19 chegando ao fim, os primeiros sinais de revisionismo canalha também começam a surgir. E repetindo aqui, quantas vezes for necessário: negacionismo mata

Sim, houve uma pandemia | A Hora da Ciência | O Globo

O termo “revisionismo” ficou tristemente famoso pelo seu uso na negação do Holocausto. Embora a revisão de eventos e narrativas – com base em novas evidências e interpretações – seja parte comum do trabalho do historiador, a revisão “do mal” (mais propriamente chamada de negacionismo) se disfarça de releitura histórica para apagar verdades inconvenientes.

Os mais insidiosos entre os “revisionistas” do Holocausto vinham não com uma negação frontal e radical, mas numa toada de “veja bem: “será que morreram mesmo seis milhões de judeus? E houve realmente extermínio em massa, ou foi sem querer?”. Se não fosse a montanha de evidência dos crimes nazistas, talvez, com o passar do tempo, essa narrativa até acabasse colando.

Com a pandemia chegando ao fim, os primeiros sinais de revisionismo canalha também começam a surgir. “Será que precisava de tudo isso? Não foi exagero, lockdown e máscaras? Nem morreu tanta gente assim. Será que se não tivéssemos feito nada, o resultado não seria igual?”.

Claro que houve erros na condução da pandemia: desde erros graves de comunicação de agências internacionais como a Organização Mundial de Saúde, até inúmeros erros locais. Quantas vezes esta coluna criticou a priorização da abertura do comércio no lugar de escolas, a falta de investimento em medidas de longo prazo como estrutura e ventilação, e os mandados de máscaras em locais abertos, como parques e praias? Mas isso não quer dizer que máscaras e distanciamento social nunca foram necessários.

Analisando os dados de excessos de mortes do site “Our World in Data”, percebemos que na onda da variante delta, em junho e julho de 2021, o Brasil chegou a apresentar 83% (quase o dobro) de mortes acima do esperado, com base na média dos anos pré-Covdi19. Em janeiro de 2022, essa taxa baixou para 47%, e, no final de dezembro de 2022, 3%.

A vacinação começou em janeiro de 2021, e demorou para emplacar. Após dois anos de vacinas, com uma das melhores taxas de adesão do mundo, hoje pode-se dizer que a Covid virou uma doença manejável, que veio para ficar. Ver mar calmo e esquecer a tempestade é tentador, mas ingênuo – ou desonesto.

Mesmo com o que aprendemos e sofremos na dificuldade de conter uma pandemia respiratória apenas com imposição de medidas drásticas – tranca tudo até chegar a vacina –pouco vem sendo feito para investir em estratégias que possam tornar a próxima crise mais manejável, como melhora na ventilação de habitações populares, do transporte público e das escolas públicas; alternativas para reduzir os horários de pico no transporte; incentivos para quem respeitar as medidas de saúde pública – em vez de punições ou constrangimento público. Também é preciso pensar – e prever – medidas de seguridade social, para que, caso um futuro lockdown se faça necessário, ninguém precise escolher entre ver a família passar fome ou ficar doente.

O investimento em pesquisa de estratégias vacinais mais rápidas e genéricas, capazes de cobrir uma ampla variedade de famílias de vírus de uma vez, precisa ser constante, e não ocorrer somente no susto, na emergência. Iniciativas de preparação para pandemias começam a surgir no mundo, e o Brasil também precisa desenvolver as suas.

Para os profissionais de comunicação de ciência, fica a árdua tarefa de manter a memória viva. Num futuro próximo, vai ter gente dizendo que a pandemia nunca aconteceu. A turma do “veja bem” já está de manguinhas de fora, alegações de que a Covid não matou tanto assim, era só tomar – insira aqui o remédio milagroso de sua preferência – e as vacinas não serviram para nada, já circulam nos esgotos. Revisionismo da pandemia é apenas mais uma forma de negar a ciência e a história. E repetindo aqui, quantas vezes for necessário: negacionismo mata.

Fonte: O Globo