A Conferência Internacional de Aids tem um papel importante na história da epidemia de aids, levando bianualmente milhares de pesquisadores, cientistas, ativistas, profissionais de saúde, jornalistas e administradores de políticas públicas de todas as partes do mundo a se reunirem em torno do combate à aids. Dois anos após o início da pandemia de Covid-19 que impactou negativamente as políticas de prevenção e cuidado ao HIV/aids em todo o mundo, o evento voltou a ser realizado de forma presencial, dessa vez em Montreal, Canadá. O tema é “Re-engage and follow the science” (envolver e seguir a ciência), o que achei bastante pertinente em tempos de ressurreição negacionista.

À convite da Agência Aids trarei nesse breve texto as minhas expectativas de minha primeira participação nesta conferência. Estou indo apresentar meu trabalho de mestrado “Desafios para prevenção do HIV e promoção da saúde sexual entre jovens em uma favela de São Paulo nos dois primeiros anos da pandemia de Covid-19”, sob orientação da rpofessora Vera Paiva no Programa de Saúde Coletiva do Departamento de Medicina Preventiva da USP. Fui bolsista CAPES entre 2020 e 2022 para o desenvolvimento desse projeto. Tive apoio da Faculdade de Medicina USP para estadia, e precisei fazer uma campanha online para conseguir comprar as passagens para Montreal. Aproveito para agradecer a todas as pessoas que confiaram no meu trabalho doando e compartilhando a campanha que foi, ao mesmo tempo, uma articulação de comunidade e uma denúncia dos cortes de financiamento para pesquisa científica no Brasil.

A Conferência foi realizada pela primeira vez em 1985 na cidade de Atlanta, Estados Unidos da América, organizado pelo Centro de Controle de Doenças (CDC) e pela Organização Mundial de Saúde e Emory University. No início, era um evento apenas científico demarcadamente biomédico. A partir de 1987 movimentos sociais organizados fizeram intervenções históricas para que as vozes das pessoas afetadas direta e indiretamente pela aids fossem ouvidas nesse espaço de compartilhamento e decisões sobre prevenção e tratamento. Assim, as ciências sociais também foram englobadas como parte das pesquisas científicas em HIV/aids, levando o estigma para o centro das discussões sobre o futuro da epidemia. O evento ganhou as proporções de hoje devido a essa participação comunitária que foi conquistada. Às violações dos Direitos Humanos têm sido desde então pautada enquanto um catalizador da epidemia de aids: “Onde os direitos humanos das Pessoas Vivendo com HIV/aids são desrespeitados as ações de prevenção e controle da epidemia têm muito menos impacto” (Gruskim e Tarantola, 2008).

A participação exige a presença das pessoas nos espaços de discussões, decisões e construções. E se essas pessoas não puderem estar presentes? Com esse questionamento, minha primeira observação é sobre o país em que será sediado o evento. Apesar da relativa abertura para imigração, principalmente enquanto mão de obra, não é tão simples e rápido conseguir um visto para o Canadá. Nas postagens da IAS no Instagram tem vários comentários de pessoas dizendo que o visto não foi emitido a tempo para participarem da conferência. No site aids2022.org, a Associação Internacional de AIDS (IAS em inglês) expressa sua preocupação com a grande quantidade de atrasos de emissão e vistos negados, o que “afeta nossa possibilidade de sediar um evento realmente inclusivo e representativo das comunidades mais afetadas pelo HIV/aids” (tradução livre). As conferências têm sido realizadas majoritariamente em países do norte global, poucas exceções (México em 2008 e África do Sul em 2016). Quanto de participação comunitária dos países mais duramente afetados pela epidemia de aids estamos perdendo nessa conferência?

Eu faço esses comentários sobre participação comunitária porque está entre as minhas principais expectativas da conferência. Isso por influência das Loka de Efavirenz Lili Nascimento e Pisci Bruja que estiveram presentes no Aids 2018 em Amsterdã, e da minha orientadora que esteve presente em tantas outras. O que brilhou aos olhos delas foi essa participação e o modo como a pesquisa científica em aids é interpelada pelos movimentos sociais.

A tradição do grupo do Núcleo de Pesquisa em Prevenção da Aids (Nepaids) carrega a participação como um princípio articulador dos outros princípios do trabalho em Saúde com base nos Direitos Humanos (acessibilidade, qualidade, aceitabilidade, disponibilidade, confiabilidade,  não discriminação). No trabalho de prevenção com jovens em Heliópolis a participação é a todo momento impulsionada pela Associação de Núcleos de Moradores de Heliópolis e Região (UNAS), sobretudo das jovens lideranças. Sem a participação, o trabalho não é nem mesmo aceito.

Estou muito empolgado para participar da pré-conferência do Aids 2022 nos dias 27 e 28 de julho. A programação envolve várias organizações não governamentais para compartilhamento de experiências exitosas de ações comunitárias de promoção da saúde e direitos humanos, sobretudo durante a pandemia de Covid-19. A necessidade de fortalecimento da participação comunitária nos estudos científicos da aids também é um tema forte do evento. Os jovens terão um espaço próprio na “Pré-conferência Jovem”, na qual eu com certeza estarei presente.

A programação da Conferência Aids 2022 parece ter uma diversidade de temáticas que estão de acordo com os seus objetivos de: “apresentar evidências”, “aprender com o Covid-19”, “abordar evidências e lacunas de implementação “, “mover a evidência para implementação ” e “dar suporte para a próxima geração “. É interessante como em várias sessões há o chamado para a aplicação prática de discussões teóricas e evidências, incluindo o compartilhamento de experiências consideradas exitosas para prevenção e cuidado do HIV/Aids e outras IST. São dezenas de sessões e workshops, mas bem resumidamente, os temas presentes de algum modo na programação são: redução de danos, prevenção e cuidado para outras infeções sexualmente transmissíveis (IST), sistemas de saúde e implementação de tecnologias biomédicas de prevenção ao HIV (PrEP, cabotegravir), tratamento do HIV, tuberculose, transmissão vertical do HIV, o consenso científico Indetectável=Intransmissível e suas reverberações para diferentes comunidades, obstáculos jurídicos para o combate à aids, exposição ao HIV durante a gravidez de jovens, combate ao estigma. Algumas oficinas me chamaram a atenção também, como a ser realizada para sensibilizar profissionais de saúde sobre as necessidades em saúde de pessoas trans.

Questões globais que impactam diretamente a saúde humana serão abordadas:  situação da epidemia entre refugiados em países africanos e da guerra na Ucrânia; impactos da pandemia de Covid-19 na prevenção e tratamento do HIV/aids; insegurança alimentar; autoteste para HIV e outras IST; saúde mental; inclusão de pessoas trans em políticas nacionais de aids.

Na Conferência vou participar mais ativamente das apresentações sobre prevenção e cuidado ao HIV e outras IST entre jovens. Não vou detalhar demais a minha agenda no evento por aqui, mas resumidamente as sessões que já escolhi previamente tem a característica de ressaltar a importância de aprender com os exemplos das jovens lideranças, assim como identificar quais são as barreiras para participação, advocacy e construção de intervenções comunitárias mais efetivas. A saúde mental de jovens vivendo com HIV/aids também será abordada por algumas dessas sessões. Em algumas destas, a pandemia Covid-19 aparece explicitamente como parte do contexto em que jovens estão enfrentando a pandemia de HIV/aids.

As minhas expectativas para o Aids 2022 enquanto um pesquisador jovem na área de prevenção ao HIV/aids são as melhores. Espero conseguir colaborar com pesquisadoras/es, ativistas, profissionais de saúde de várias partes do mundo. Mas espero que essas partes do mundo incluam as pessoas da latino América e América Central, da Ásia e África. É essa participação que eu espero ver no evento, mas indo preparado para uma frustração, já que até mesmo a IAS está se lamentando pela forma como o governo canadense tem recusado e atrasado a emissão de vistos. Volto em breve nesse mesmo jornal para dizer o que achei sobre a Conferência!

* Marcelo Jardim é psicólogo e mestrando em Saúde Coletiva na Faculdade de Medicina USP. Desde 2015 trabalha com projetos de pesquisa e extensão universitária de promoção da saúde sexual e reprodutiva entre jovens e adolescentes nas periferias de São Paulo, principalmente na favela de Heliópolis com o apoio da Associação de Núcleos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS). O quadro teórico e metodológico que guia seu trabalho é da Vulnerabilidade e Direitos Humanos. Nos últimos três anos foi educador em projetos de educação sexual de base comunitária para prevenção do HIV e outras IST em Heliópolis na perspectiva de educação entre pares. As barreiras e oportunidades para esse trabalho durante a pandemia de Covid-19 são o objeto de seu mestrado, a ser apresentado em pôster na Conferência Internacional Aids 2022 em Montreal, Canadá.