Em maio deste ano, por meio de um decreto presidencial, o governo federal modificou a estrutura do departamento que promove o combate à aids no Ministério da Saúde. As mudanças causaram apreensão entre as pessoas que lutam contra a aids no País e estão sendo duramente criticadas por médicos, gestores e ativistas. Nessa quarta-feira (17), a convite da coordenação do Mopaids (Movimento de Luta Contra a Aids), a coordenadora-adjunta do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, Maria Clara Gianna, e a coordenadora do Programa Municipal de DST/Aids, Maria Cristina Abbate, participaram da reunião ordinária explicaram o posicionamento do Estado e Município sobre o assunto. As duas disseram que são contrárias as mudanças e, assim como o movimento social, consideram que a política de aids perdeu visibilidade na esfera federal.

Antes Departamento de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), Aids e Hepatites Virais, o atual governo passou a chamar de Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. “Com a retirada da palavra aids do nome oficial do Departamento, já estamos vendo de perto o enfraquecimento dos programas estaduais e municipais de DST/aids pelo Brasil. A doença perdeu visibilidade. Departamento de doenças crônicas pode ser qualquer coisa, pode ser diabetes, hipertensão”, criticou a médica Maria Clara.

A gestora considera ainda que o programa de aids perdeu a característica. “Temos percebido mudanças no que diz respeito ao posicionamento do Ministério da Saúde com relação às populações vulneráveis. Precisamos continuar denominando as nossas populações prioritárias na luta contra a aids. São os homens que fazem sexo com homens, jovens gays, travestis, transexuais, usuários de drogas, profissionais do sexo. São pessoas que precisam ser acolhidas”, argumentou Maria Clara.

Desconstrução da história

Do município, a psicóloga Maria Cristina Abbate disse que estamos vivenciando um retrocesso na luta contra a aids. “Não foi uma mudança de nome, foi uma desconstrução, uma atitude desrespeitosa com uma luta histórica que não é de governo ou legenda partidária. É uma luta composta por muitas pessoas, de diversas áreas, sobretudo, as pessoas que vivem e viveram com HIV/aids neste país.”

Ela continua: “Quando a gente fala em programa brasileiro de aids, que já foi exemplo mundial, falamos do resultado da união de muitas forças. Se alguém chega lá e muda, está mudando histórias sem combinar com quem construiu. Tirar nome é dar invisibilidade ao que foi construído, parece que estamos tratando a aids como algo controlado. Quem está nos serviços vê que todos os dias chegam novas infecções. São pessoas jovens, em condição de vulnerabilidade.”

Para Cristina, que trabalha contra a aids desde os anos 1990, “não dá para misturar patologias com condicionantes sociais e colocar no mesmo campo de atuação a população trans e os jovens gays com verminose.”

“Lidar com gente é lidar com a vida como ela é. Quando tiro um nome eu deixo de chamar, por exemplo, a puta de puta. Vou chamar do que? Isso não é ofensa a ninguém, não fere valores morais, só trata a realidade como ela é. As pessoas são livres por natureza. O governo não tem que ter tutela sob ninguém, ele está lá só para atender as necessidades da população”, afirmou a gestora municipal.

Cristina acredita que não foi uma mudança de nome e sim um ciclo que se fechou. “Aquele programa de aids que conhecemos acabou. Agora começa um outro, que nós ainda não fomos apresentados. Vamos ver como este Departamento vai se apresentar para nós e como vamos nos relacionar com isso.”

Em nota divulgada na época, o Ministério da Saúde afirmou que “a nova estrutura fortalece integração entre as áreas do Ministério da Saúde” e que a “estratégia de resposta brasileira ao HIV não será prejudicada”.

Próximos passos

Tanto Maria Clara quanto Maria Cristina garantiram que em São Paulo, berço do Programa de Aids, o trabalho continua. “Temos levado essa discussão aos serviços municipais. Vamos continuar trabalhando com a questão da diversidade, com foco nas populações prioritárias, com os agentes de prevenção, com teste na rua, com autoteste, enfim, com todas as metodologias até então colocadas. Se vocês tiverem novidades também podem apresentar que a gente topa encarar”, afirmou Maria Cristina.

Na mesma linha, Clara considera que é possível continuar a luta. “Vamos conseguir manter o trabalho, mas não com a dimensão como deveria ter. Neste momento, lutamos para garantir que todos tenham acesso aos antirretrovirais, já há fracionamento no estado, aos insumos de prevenção e informações sobre HIV/aids. Há meses não recebemos um quantitativo de camisinhas. Não está em falta porque compramos, mas há Estados que não têm o insumo.”

Sobre o orçamento para aids no próximo ano, Maria Clara disse que participou de uma reunião em Brasília e que foi informada que está mantido, principalmente para compra de medicamentos e insumos laboratoriais. “Estamos lutando também para garantir o recurso ao fomento de ações da sociedade civil.”

“Não vamos abrir mão das coordenações de IST/Aids e Hepatites Virais, vamos manter as diretrizes do Programa e manter o nome. Os dados sinalizam que estamos no caminho certo. Estamos registando mais casos de HIV, mas o óbitos por aids diminuíram. Só o nosso Estado é responsável pela dispensação de 6 mil PrEP, queremos ampliar ainda mais. Vamos resistir e permanecer juntos para dar conta desta luta”, finalizou Maria Clara.

Movimento social

Os ativistas que lutam contra a aids em São Paulo disseram que ficaram aliviados com os posicionamentos do estado e município e afirmaram que a luta continua. “As nossas preocupações se comungam. Já estamos pensando em outras estratégias para reverter o decreto presidencial e reverter às mudanças. O movimento social já publicou diversas cartas, também estivemos representados em Brasília, em audiência pública chamada pela Frente Parlamentar, mas queremos mais. Talvez tenhamos que voltar as ruas e reivindicar os nossos direitos”, disse Américo Nunes, coordenador do Mopaids e fundador do Instituto Vida Nova.

Do GIV (Grupo de Incentivo à Vida), Cláudio Pereira contou que a falta de antirretrovirais em diferentes lugares do país já virou judicialização. “Estamos acompanhando diversas ações, o Ministério Público Federal já foi acionado.”

Na opinião da ativista Margarete Preto, do Projeto Bem-Me-Quer, é preciso levar essa discussão a nível nacional. “Vamos ter o Enong, em novembro, mas isso não impede de nos organizarmos antes disso e cobrar novas mudanças. Podemos, inclusive, levar esse debate para a Conferência Nacional de Saúde.”

José Carlos Veloso concordou com Margarete e acrescentou que é preciso saber qual será o encaminhamento da audiência pública. “Precisamos unir nossas forças e pressionar o governo.”

Da ONG Koinonia, Ester Leite sugeriu que as ONGs se unam outra vez e informem aos seus assistidos o risco que eles correm quando o Departamento nega o HIV. “Se o governo não quer mais comunicar sobre aids nas redes sociais, então vamos usar as nossas. Temos que alinhar os discursos, planejar nossas ações e mobilizar pessoas.”

Estiveram presentes na reunião, na sede do GIV, quase 50 pessoas. Américo informou que todos os encaminhamentos serão feitos e socializados no grupo. O próximo encontro oficial do Mopaids já tem data marcada: 21 de agosto, na sede da ONG Koinonia, na Praça da Sé.

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

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