Com eficácia já testada e comprovada por diversos trabalhos científicos, este método é foco de um importante projeto realizado na América Latina, o ImPrEP. Idealizado em 2016 pelo INI/Fiocruz (Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz), tem como objetivo monitorar a utilização da PrEP no SUS (Sistema Único de Saúde), bem como ajudar a construir programas similares no México e no Peru.
O trabalho é realizado com homens que fazem sexo com homens (HSH), mulheres transexuais e travestis.
“O ImPrEP é um projeto guarda-chuva que tem vários estudos dedicados desenhados para gerar dados sobre diferentes aspectos da profilaxia pré-exposição. Ao longo dos anos, verificamos, por exemplo, o conhecimento e a disposição para o uso dessa estratégia entre a população alvo, o uso do autoteste e a soroincidência do HIV”, comenta Valdiléa Veloso, pesquisadora da Fiocruz e atual diretora do INI.
Segundo a especialista, as informações coletadas ajudarão a entender para onde devem ser direcionados os esforços, na tentativa de reduzir a vulnerabilidade das pessoas, e contribuirão para o monitoramento e o aperfeiçoamento do tratamento nos países envolvidos.
“O nosso projeto traz dados que ainda não existiam e que são cruciais para entender a epidemia de HIV/Aids entre a população mais afetada e, especialmente, a prevenção com foco na PrEP. Isso é uma contribuição fantástica para a América Latina, região que historicamente não recebe tantos investimentos nessa área”, complementa.
Como surgiu o ImPrEP
O trabalho da Fiocruz com HIV/Aids começou em 1988, quando a epidemia estava crescendo no Brasil. Inicialmente, a entidade estruturou a parte de assistência e, depois, com a criação do Laboratório de Pesquisa Clínica em Aids e IST, chefiado pela médica Beatriz Grinsztejn, fortaleceu a área de pesquisa e ensino.
A partir de 2008, grande parte da atuação do departamento se concentrou na prevenção das populações mais vulneráveis.
“De lá para cá, participamos de diversos estudos, como o iPrEX, o primeiro a relatar os dados de eficácia sobre o impacto da PrEP oral para a prevenção do HIV. E, assim que o medicamento foi aprovado nos Estados Unidos, desenhamos junto com o Ministério da Saúde um projeto para avaliar a sua implementação no país. Após diversas etapas e análises, inclusive de custo-efetividade, mostramos que se tratava de uma estratégia viável, e ela acabou se tornando uma política pública”, relata Veloso.
Com base em toda a experiência adquirida, e com o intuito de compartilhá-la com outras nações da América Latina que têm mesmo o perfil de epidemia de HIV/Aids —mais concentrada em HSH, mulheres transexuais e travestis—, a Fiocruz elaborou um novo trabalho e o submeteu, em 2017, a um programa de financiamento da agência global de saúde Unitaid. A iniciativa foi aprovada e recebeu o nome de ImPrEP, cuja primeira fase aconteceu entre 2018 e 2021.
Quem está envolvido no ImPrEP
O projeto, encabeçado pelo INI/Fiocruz, é realizado em parceria com o Ministério da Saúde do Brasil, a Universidade Peruana Caetano Heredia, do Peru, e a Clínica Condesa e o Instituto Nacional de Saúde Pública, ambos do México.
Ele conta com a participação de pesquisadores especializados na epidemia de HIV/Aids e em saúde pública, incluindo médicos, psicólogos, farmacêuticos, enfermeiros e técnicos em enfermagem.
No Brasil, estão envolvidos no trabalho 14 centros de estudos vinculados a unidades dos SUS. Eles ficam localizados em Manaus (Amazonas), Salvador (Bahia), Brasília (Distrito Federal, Recife (Pernambuco), Rio de Janeiro e Niterói (Rio de Janeiro), Porto Alegre (Rio Grande do Sul), Florianópolis (Santa Catarina) e São Paulo, Santos e Campinas (São Paulo). No México, são 4 centros em 3 cidades e, no Peru, 10 centros em 6 cidades.
Estudo de demonstração
No estudo de demonstração, um total de 9.509 pessoas (3.928 no Brasil, 3.288 no México e 2.293 no Peru) participam do ImPrEP. Todas receberam a PrEP oral e foram acompanhadas por um período de pelo menos 52 semanas (ou cerca de um ano).
Os principais achados foram:
- Pessoas que pegaram o primeiro frasco do medicamento e não voltaram para dar sequência ao tratamento: 4,2% (Brasil), 7,9% (México) e 16,8% (Peru)
- Taxa de quem manteve acompanhamento por um longo período: 81,1% (Brasil), 68% (México) e 51,8% (Peru)
“Percebemos que o tempo de permanência no programa está diretamente relacionado ao conhecimento sobre a PrEP e, também, a sua disponibilidade. Por exemplo, no Brasil, há mais divulgação e o medicamento faz parte de uma política pública, estando disponível no SUS. As pessoas, então, entendem como algo concreto e que podem planejar o uso. Já no México e no Peru, o acesso é mais limitado”, pontua Veloso.
Conhecimento e disposição em usar a PrEP
Uma das etapas do ImPrEP visou comparar a conscientização e a disposição de usar PrEP entre homens que fazem sexo com homens maiores de 18 anos e que possuíam critérios para iniciar a profilaxia. Para isso, foram realizadas duas pesquisas online, uma em 2018 e outra em 2021.
Os participantes, 19.487 no primeiro ano e 13.476 no segundo, foram recrutados via aplicativos de encontro Grindr e Hornet, além das redes sociais Facebook e Instagram.
Quando questionados se conheciam a profilaxia de prevenção:
- entre os brasileiros: 68,6% (2018) e 94,1% (2021) responderam que sim
- entre os mexicanos: 64% e 82,7%
- entre os peruanos: 46,5% e 77,1%
Em relação à disposição para usar a PrEP:
- no Brasil: de 62,5% (2018) para 67,4% (2021)
- no México: de 70,1% para 68%
- no Peru: de 57,6% para 58%
Estudo de modelagem
Em outra fase do ImPrEP, chamada de estudo de modelagem, descobriu-se que uma intervenção de PrEP alcançando 10% de aceitação entre GBM (gays, bissexuais e outros homens que fazem sexo com homens) dentro de 60 meses poderia evitar 501 infecções por HIV no Rio de Janeiro, 133 em Salvador e 119 em Manaus em 5 anos.
Atingindo 60% de aceitação dentro de 24 meses, evitaria 10 vezes mais infecções (redução de incidência de 35,9% no Rio de Janeiro, 37,8% em Salvador e 38,9% em Manaus).
Com esses dados, a conclusão dos pesquisadores é de que o aumento do uso da profilaxia de prevenção no Brasil diminuiria substancialmente a transmissão do vírus causador da Aids nos próximos 5 a 10 anos.
Contudo, esse uso precisaria ser extremamente alto para atingir a meta proposta de redução de incidência de 75% em 5 anos.
Barreiras e dificuldades para a utilização da PrEP
O ImPrEP também se dispôs a verificar as barreiras e as dificuldades relacionadas à utilização da PrEP —as respostas foram obtidas através de questionários online. No quesito barreiras de informação, o medo de efeitos colaterais e a efetividade da profilaxia foram o maior motivo de preocupação.
Essas questões, inclusive, ficaram à frente das barreiras de comportamento (uso diário da PrEP, falar com o médico sobre a vida sexual, ter que se testar a cada 3 meses e não se preocupar com camisinha) e das barreiras de preconceitos (ser mais vulnerável ao vírus por ser elegível para a PrEP e sofrer estigma por parte da sociedade).
O estudo apontou ainda que as barreiras de informação foram menos relevantes para as pessoas que já conheciam a estratégia de prevenção ou já a tinham usado anteriormente. “Esses dados mostram, mais uma vez, que ter informações sobre o medicamento faz toda a diferença para melhorar a aderência. E, neste ponto, o ImPrEP tem sido um importante aliado”, destaca a pesquisadora da Fiocruz.
Disposição para uso do autoteste
As pesquisas online realizadas pela equipe do projeto verificaram mais um ponto: a disposição para uso do autoteste de HIV, ferramenta essencial na prevenção combinada da infecção. Dentre os participantes voluntários (59% do Brasil, 30% do México e 11% do Peru), 20% declararam nunca terem se testado para o vírus, com uma proporção maior no Peru (24%). O motivo mais apontado foi o medo de receber um resultado positivo.
Em relação ao conhecimento sobre o autoteste, o resultado foi melhor no Brasil, com 41%. Esse percentual foi de 28% no México e de 25% no Peru. Números semelhantes foram obtidos quando a pergunta foi sobre a disposição em fazer o autoteste: 40% no Brasil, 36% no México e 32% no Peru.
Uma importante descoberta deste estudo, de acordo com Veloso, foi a de que os voluntários que demonstraram interesse em fazer o autoteste, em geral também relataram interesse em fazer o uso da profilaxia pré-exposição. “Isso sugere que seria interessante incluir a ferramenta como parte de programas de PrEP.”
Próxima fase: PrEP injetável
Ainda durante os trabalhos envolvendo a PrEP oral, o ImPrEP iniciou um estudo envolvendo a versão injetável (ou de longa duração) da profilaxia, baseada no antirretroviral cabotegravir e cuja aplicação é feita por um profissional da saúde a cada 2 meses.
O objetivo é produzir dados para acelerar a sua oferta no país, identificar facilitadores e barreiras para a devida implementação nos serviços de saúde e avaliar a eficácia na redução do risco de infecção pelo HIV.
Em um primeiro momento, foram feitas pesquisas online com pessoas elegíveis para receber essa nova tecnologia para avaliar a sua percepção sobre ela. “Neste experimento, empregamos uma metodologia que vem do marketing. Ela consiste em apresentar o produto para a população alvo, mostrando as características ou atributos, dentre outras informações, para conhecer a sua opinião”, explica Veloso, acrescentando que os resultados revelaram que essa foi uma opção bem aceita.
Além disso, o ImPrEP elaborou um levantamento econômico, no qual considerou o que será preciso para armazenar, distribuir e aplicar a PrEP injetável e acompanhar os usuários. O projeto agora entra na segunda fase —também financiada pela Unitaid—, que avaliará praticamente os mesmos pontos da PrEP oral.
“Faremos um estudo de demonstração para verificar na prática, na vida real, a aceitação e o interesse das pessoas em usar essa estratégia. Vamos, então, aplicá-la, acompanhar os participantes, fazer testagens e analisar quanto tempo as pessoas permanecem utilizando a profilaxia”, adianta a diretora do INI/Fiocruz.
Essa etapa, batizada de ImPrEP CAB Brasil, será realizada apenas no território nacional e incluirá 1.200 pessoas. A expectativa é que seja iniciada ainda este ano ou no começo de 2023. No total, o projeto deverá durar 4 anos.
“Os trabalhos que fizemos com a PrEP oral já pavimentaram o caminho para a chegada da PrEP de longa duração, para que a sua incorporação no SUS ocorra em menos tempo. Seguiremos usando todos os nossos recursos e experiência para que este projeto tenha tanto sucesso quanto o anterior”, completa Veloso.
Fonte: Viva Bem / UOL