Em mais um evento importante na semana em que se celebra o Dia da Visibilidade Trans, o Sesc São Paulo  realizou no sábado (30), em parceria com a Agência de Notícias da Aids, a conversa “Visibilidade Trans: Cidadania, Saúde, Sexualidade e Inserção Social, transmitido ao vivo online pelo canal do Youtube do Sesc. À frente do bate-papo, Bárbara Hugo, travesti preta e mestranda em Educação na PUC-SP , integrante do Núcleo de Artes Visuais do Sesc Pompeia.

Abrindo a sua participação, a vereadora Duda Salabert – professora de literatura e a primeira transexual eleita em Belo Horizonte, tendo sido candidata mais votada na história das eleições municipais da capital mineira – destacou a importância do tema, a realidade das pessoas travestis e transexuais do país, e observou que é um tema historicamente apagado e continua em apagamento.

“Eu sou mulher travesti, transexual, mãe e sempre quando falo que sou mãe, há uma visão transfóbica. As pessoas questionam se a minha filha foi registrada com duas mães. Sim, foi registrada e até onde eu sei, não se i se isso é uma verdade absoluta, eu fui a primeira transexual a efetivar o direito à licença maternidade de 120 dias pelo INSS. E foi uma vitória no movimento trans, porque nós pessoas travestis e transexuais também podemos ser mães assim como as mulheres cisgêneras”, disse em sua apresentação.

Outra convidada, Bruna Benevides, do Rio de Janeiro, sargenta da Marinha do Brasil e integrante da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), contou que iniciou essa trajetória pensando ser a única transexual no mundo, quando se deparou com o movimento social organizado de transexuais e travestis muito ativo no Brasil desde pelo menos 1992. “Eu vi a Jovanna Cardoso, uma das fundadoras, na televisão falando sobre direitos, falando sobre a luta por resistência. E eu falei: mas gente, o que essas pessoas estão querendo dizer? Como assim, travesti quer ter direito? Naquela época a gente não era incentivada a estudar porque a gente achava que não teria um lugar, que ninguém nos contrataria. Tenho hoje 23 anos de serviço ativo na Marinha do Brasil, responsável por uma quebra em um processo de exclusão sistemática de pessoas trans nas Forças Armadas. O que nós estamos fazendo é um resgate desta cidadania junto a um processo urgente de humanização das nossas existências.”

O trio de convidados se completou com Alexandre Peixe dos Santos, ativista desde 2004, quando se identificou como homem trans e vem atuando pela Antra desde então. É co-fundador do IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades. Alexandre conta que demorou muito para conquistar os direitos de mudança de nome e gênero e também de cirurgias, tendo sido o primeiro homem transexual  brasileiro a realizar procedimentos cirúrgicos financiados exclusivamente pelo SUS.

DIA DA VISIBILIDADE TRANS

A primeira pergunta de Bárbara foi sobre o que o Dia da Visibilidade Trans representa para os convidados, para além da identidade trans, mas como pessoas.

Duda relatou que tem uma relação muito íntima com a data, porque foi nesse dia que se colocou pela primeira vez em contato com o movimento de pessoas travestis e transexuais. “Eu iniciei a minha transição de gênero aos 35 anos, a idade que é a expectativa de vida das pessoas transexuais no Brasil. Foi algo arrebatador pra mim, abriu uma dimensão em mim que eu ainda não conhecia até então, que era a dimensão de uma mulher transexual e foi arrebatador também porque eu tomei contato com números que mostram que a população transexual na América Latina é um dos grupos mais aviltados e marginalizados. Pra mim é um aniversário também, é uma data de luta, de reflexão, mas no âmbito pessoal é um aniversário porque foi nessa data que eu tive o start para iniciar minha transição de gênero.”

Para Bruna, a data rememora o momento onde as travestis mostraram que a partir dali não aceitariam mais viver nesse processo de desumanização ou invisibilidade. “A data em si me remete  a essa luta tempos atrás, que quando a gente vê em 2020 trinta e uma pessoas trans eleitas, isso não é um fenômeno, quando a gente vê crianças trans, quando a gente vê a Erika Malunguinho ser eleita a primeira deputada, talvez da América Latina, e a primeira do Brasil, isso não é um fenômeno. É resultado de luta, lutas constantes, mas também de perdas significativas, perdas de companheiras que foram assassinadas, que foram deixadas para morrer. Então essas nossas histórias dessa vida paralela, desse mundo alternativo que nós tivemos que construir para sobreviver, resistir, quando a gente começa a emergir para esse lugar social, a gente vê realmente o quanto a gente ainda tem que avançar.”

Alexandre comentou que para os homens trans, o Dia da Visibilidade é mais recente e que o IBRAT teve o primeiro encontro de homens trans, por exemplo, em 2015. “A gente tem um agradecimento a fazer às travestis, às mulheres transexuais, que nos pegaram no colo. Em 2004, quando eu comecei a discutir a questão dos homens trans, ainda não se falava dentro do movimento nacional. A gente pegou uma carona com o movimento do 29 de janeiro e a gente tem sido abraçado com muito carinho, com muito amor. A ANTRA é uma parceira desde então”.  Ele observa que os homens trans têm muito a comemorar, que alcançaram conquistas muito rapidamente e levantou a questão de que vivemos em um país muito machista, então é muito mais fácil agregar homens trans do que mulheres trans. “As cirurgias, a hormonização para homens trans vieram muito mais rápido, enquanto mulheres trans e travestis têm lutado anos e anos para ter conquistado seus corpos, os homens trans não.”

Bárbara pontuou que o lançamento do dossiê realizado pela ANTRA, em especial pela Bruna Benevides, também é uma grande conquista. Assim como a vitória da Duda nas urnas e de tantas outras. E quis saber dos convidados como eles se veem, se percebem importantes neste momento para a construção da identidade trans.

MOMENTO ATUAL

“Este momento de me reconhecer como uma pessoa  que constrói algo, que deixa uma marca para essa linha do tempo que vem sendo construída, é muito significativo porque só me foi possível porque eu encontrei um cenário diferente do que em outros tempos. Não estou dizendo que era fácil, mas eu tinha muito mais ferramentas do que aqueles que me antecederam”, reconheceu Bruna. Ela disse ser importante ela entender qual é o papel dela nesse lugar, mas principalmente para não individualizar uma luta que é coletiva. “Eu me lembro de quando o movimento negro se organizou lá atrás e tinham mais de cem identidades distintas. E disseram assim: a partir de agora seremos pretos e pardos e seremos um movimento negro. Isto não tem a ver com ter uma história única, com ter uma identidade única. É uma forma de dizer, ou a gente se junta ou continuaremos morrendo sozinhos.”

IMPORTÂNCIA DA REPRESENTATIVIDADE NAS ELEIÇÕES

Bruna contou que a ANTRA faz o monitoramento das eleições desde 2014 para fortalecer a atuação das pessoas trans eleitas, principalmente as do interior que não têm visibilidade. “É importante que esses lugares sejam ocupados por nós e que a gente possa se colocar na defesa dessas pessoas, pensando em construir uma frente ampla pela vida das pessoas trans. A ANTRA hoje está desenhando esse projeto para apresentar a nível nacional, incluindo todas as parlamentares e ativistas, porque eu acredito que a luta pela transformação da sociedade é uma luta feminista, mas ela também é uma luta negra e uma luta trans.”

“É muito importante ter travestis e mulheres transexuais eleitas nesse pleito de 2020, ainda mais em um momento de pandemia, com um número altíssimo de pessoas trans assassinadas. É muito difícil ter no dossiê da ANTRA o número de trans masculinos assassinados ou que cometeram suicídio, o que não deixa de ser um assassinato social. Eu perdi, só no ano passado, seis amigos que se suicidaram”, questionou Alexandre.  Ele disse que o STF reconhece o direito à mudança de nome e gênero, mas ao mesmo tempo, outros órgãos públicos não acompanham essa mudança, dificultando que os registros sejam feitos da maneira correta.

“Se eu pudesse escolher, nem na política institucional eu estaria. Eu sou professora, eu estou na política, mas sou professora. Mas como falaram nossas companheiras do passado, para nós pessoas transexuais a política não é opção, é sina, é destino.  E não é por mim que eu estou por lá, é por nós e, às vezes, eu tenho que recuar sim, porque senão, é cinco tiros na cara também”, disse Duda.

PANDEMIA

Alexandre afirma que a pandemia só aumentou a exclusão das pessoas transexuais. “A gente foi colocado mais um pouquinho de lado. Quando a gente pensa no isolamento social, a gente começa a se conhecer melhor, a se isolar mais, a adoecer mais e a nossa saúde mental não é pensada. Nossa saúde mental se agrava muito”, salientou.

Duda relatou que, antes da pandemia, 90% das travestis e transexuais do país estavam na prostituição; 91% das travestis e transexuais de Belo Horizonte não tinham concluído o ensino médio; 6% das travestis e transexuais de Belo Horizonte tinham sido expulsas de casa com menos de 13 anos de idade; 79% dos assassinatos de travestis e transexuais ocorreu com violência exagerada; 80% das travestis assassinadas no Brasil eram negras, o que mostra uma violência interseccional, o mesmo corpo encarnando dois genocídios: contra a população negra e contra a população trans. “Com a pandemia esse cenário se agrava e se aproxima de uma forma que nós não conseguimos mensurar, porque projeta-se ainda sobre esse cenário  a questão da saúde mental. E temos que lembrar que essa eleição foi a primeira dentro do governo Bolsonaro, que é um governo que abertamente se posicionou a favor da manutenção e do aprofundamento do genocídio que há contra a população transexual.”

CONVIVÊNCIA

Bruna

“Precisamos incentivar relacionamentos com pessoas trans nos espaços sociais. Não estou falando de afetividade, de sexo. Estou falando de relacionamento interpessoal, conviver com essas pessoas. E essa convivência precisa ser incentivada, celebrada e protegida. Não gosto da ideia de abrir os espaços de forma desordenada para não acontecer o que está acontecendo, para não acontecer o que aconteceu com Marielle. A prioridade é sobreviver.”

Duda

“Termino minha fala que a Bruna mostrou no relatório que ela construiu que 75% dos brasileiros não tem nenhum contato com uma pessoa transexual. Se você não teve nenhum contato, procure o movimento, vai nos fortalecer. Porque, infelizmente, políticas públicas não existirão para nós. Nós temos que fortalecer nossas redes de afeto e de política.”

Alexandre

“Falar um pouco da nossa vivência, da nossa trajetória é muito importante. 75% das pessoas não nos conhecem. Somo nós, gente, pessoas, humanos. Esta semana me pediram para falar sobre desejo em um trabalho sobre a visibilidade trans e eu disse: a única coisa que eu desejo é poder desejar. A gente é ceifado de muitas coisas, de ter direitos a coisas básicas que as pessoas cisgênero têm.”

 

Mauricio Barreira

 

Dica de Entrevista

Duda Salabert

E-mail: sofiaamarall@yahoo.com

 

Alexandre Peixe dos Santos

E-mail: xandepeixe@gmail.com

 

Bruna Benevides

E-mail: bruna-marx@hotmail.com