“Eu me assumo mulher travesti por uma questão política do movimento, o qual temos que ter empatia. Acredito que todas e todos nós somos transexuais, e existem as que têm a necessidade de readequação sexual e as que não. O termo deve ser usado para generalizar todas as pessoas trans, mas não para diferenciar identidades”, diz Jovanna Cardoso da Silva, mulher negra com uma trajetória de vida repleta de títulos, também conhecida como Jovanna Baby.

Jovanna nasceu em Mucuri, na década de 1960, onde viveu até o começo da adolescência com cinco irmãs e três irmãos. A casa, comandada por pais cristãos, também era hostil com a identidade da jovem. Assim, Jovanna saiu da cidade natal aos 13 anos e se deparou com os procedimentos da rua no Espírito Santo. “Fui morar em Vitória sem conhecer ninguém e sem apoio social nenhum. Me prostituía nas ruas centrais, comi o pão que o diabo amassou por conta das donas dos pontos que tomavam o dinheiro e espancavam quem chegava depois delas”, lembra.

A existência de Jovanna para a Segurança Pública não era da liderança que marcou sua vida nos anos seguintes. Após quatro dias detida e tipificada no artigo 59, da Lei de Contravenções Penais, a jovem foi solta por uma advogada da Secretaria de Assistência Social de Vitória.

Ao retornar ao ponto de trabalho naquela noite, descobriu que não foi a única a ser presa e enquadrada na conhecida Lei da Vadiagem, que não compreendia a situação das prostitutas como trabalho. Junto das companheiras Bianca e Kelly, que se reuniam numa escadaria próxima ao ponto de prostituição, a menina ajudou a fundar a Associação das Damas da Noite do Espírito Santo. Em 1979, tornou-se vice-presidente da organização. A principal bandeira do movimento era eliminar a violência a que essas mulheres eram submetidas. O maior empecilho, na época, foi custear o registro feito em 1981.

Mesmo quando mudou para o Rio de Janeiro, a violência não deixava o cotidiano de Jovanna e a vontade de se organizar permanecia. A vida da travesti na prostituição seguiu até a década de 1990, com pontos de trabalho novos: a Praça Tiradentes, a Praça Mauá e a Central do Brasil.

A já existência da Associação das Prostitutas da Vila Mimosa deu um start para os trâmites da criação de um novo movimento de prostitutas. Então, Jovanna viu nascer a segunda organização da qual fez parte: a ASTRAL, Associação de Travestis e Liberados.

Logo depois, a ASTRAL virou RENATA – Rede Nacional de Travestis, até no ano de 1997 se tornar a ANTRA – Articulação Nacional de Travestis, a qual Jovanna presidiu de 1998 a 2000 e novamente de 2009 a 2001. 

A liderança seguiu atravessando a vida da mulher. Após a fundação da ASTRAL, Jovanna se tornou presidente do movimento. O dia do registro de pessoa jurídica da organização foi, para ela, um marco histórico da capital fluminense. 

Jovanna foi trabalhadora do sexo até os 25 anos. Passou a fazer faxinas e outros trabalhos, e logo se tornou agente multiplicadora de informação sobre direitos sexuais. 

“A chegada da aids para as travestis foi muito dolorosa. Algumas, mal sabendo [do diagnóstico], já estavam morrendo. Não tinha tempo de fazer o processo de posto de saúde, hospital e médico. Ficamos desesperadas”, relata. Daquela época, ela foi uma das únicas que sobreviveu à doença.

A convite de Kátia Tapety, primeira transexual eleita para um cargo político no Brasil, Jovanna se mudou para o Piauí, onde se tornou assessora parlamentar. Em seguida, veio a direção municipal de políticas da diversidade sexual. A coordenação da Secretaria de Direitos Humanos chegou em 2013 e dura até hoje.

Entre as conquistas, a travesti participou da suspensão da lei que proibia discussões sobre gênero e sexualidade nas escolas municipais e particulares da cidade.

Hoje, aos 59 anos, Jovanna é presidenta do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros.

Ela acredita que o processo de hormonização, feito quando era mais jovem, causou danos irreparáveis à sua saúde. “Tive hepatite, fiquei vários dias internada, ainda antes de sair da juventude, com uns 26 ou 27 anos. Fiquei muito doente de hepatite por tomar hormônio sem orientação médica. Eu tomava muito, às vezes eu pegava uma cartela de Anaciclin e tomava todinha no café da manhã.Eu sofria tonturas, desmaio, isso acontece com todas as pessoas que tomam hormônio para mudar as formas do corpo. Eu parei de tomar aos 30 anos e não tomo mais até hoje. Tomar hormônio não é bom, não é saudável e as pessoas precisam conversar com os médicos antes de tomar essa decisão”, alerta. 

Para envelhecer com saúde sendo trans, ela ressalta que é importante não tomar hormônio sem orientação médica.  “Tenho pressão alta, labirintite e tive problemas seríssimos de varizes, de dores gigantescas nas pernas. Inclusive, vai ser necessária uma cirurgia, isso tudo por causa do hormônio que eu tomei na minha juventude. Eu não fiz por ter uma velhice saudável. E eu acredito que a maioria das pessoas trans no Brasil também não estão fazendo por onde. A grande maioria faz uso de hormônio e não é saudável . E mais de 90% dessa população não tem acesso à orientação médica. Não estou envelhecendo com saúde.”

Envelhecer como uma pessoa trans no país que mais mata essa população no mundo, é matar cem leões por dia, é receber um troféu da vida por ter driblado essa expectativa de vida que é de 35 anos e ter chegado aos 59. Eu também não sou uma pessoa muito fadada a perder noites de sono, a festas, a farras, eu nunca fui. sempre fui uma pessoa muito caseira, muito discreta. Talvez isso tenha me ajudado bastante a ultrapassar essa barreira dos 35 anos. E nós temos poucas mulheres trans, travestis que conseguiram ultrapassar essa expectativa de vida brasileira que é de 35 anos, infelizmente,” lamenta.

 

Mauricio Barreira

 

Dica de Entrevista:

FONATRANS – Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros

Presidenta: Jovanna Cardoso da Silva

E-mail: jovannababy1@hotmail.com

 

Fonte: Alma Preta - Jornalismo Preto e Livre