Violência contra mulheres trans explode no Rio e chega a quase um caso por dia

Quinta-feira, 26 de maio de 2022. A faxina diária na casa é interrompida pelo toque inesperado da campainha. Sozinha em seu apartamento numa comunidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, X. (o nome foi preservado por questões de segurança) abre a porta e se depara com dois homens encapuzados. Um deles a derruba com um soco no rosto. O outro passa a golpeá-la na cabeça. A sessão de espancamento continua até que um deles, valendo-se da condição da vítima, arranca sua bermuda.

“Apanhei enquanto era estuprada. Era chute e soco. Eu não conseguia nem gritar, só queria me proteger. Tudo que eu conseguia dizer era: Por favor, não me mata”, diz.

Após meia hora, os criminosos deixaram a casa de repente, sem levar nenhum pertence. Nada poderia ter motivado aquilo, acredita X., a não ser sua identidade de gênero.

“Foi transfobia. Eles nem falavam nada. Só queriam me machucar”, acrescenta a mulher, cujo rosto ferido encarna a dor de muitas outras, violentadas apenas por serem quem são. “A gente tem que sorrir e ficar quieta. E se eu tivesse morrido? Se tivessem me matado?”

Mês do orgulho LGBTQIA+, junho encontra um Rio marcado pelo avanço do ódio. Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, apontam que o número de mulheres trans que buscaram atendimento em unidades hospitalares por terem sofrido algum tipo de agressão explodiu nos últimos dois anos.

Só em 2022, o estado já contabilizou 146 casos suspeitos ou confirmados, quase um por dia. O número se aproxima do total do ano passado, que bateu o recorde da série histórica, iniciada em 2015: 159 registros.

A capital somou, entre janeiro e maio de 2022, mais que o dobro do número de casos de 2021 inteiro. Já são 73 notificações este ano, contra 29 no ano passado.

Rosto de X., moradora de Duque de Caxias, exibe cicatrizes da intolerância — Foto: Alexandre Cassiano

“Em 2021, as pessoas ficaram mais em casa e se expuseram menos a situações de risco, o que ajuda a explicar o aumento. Mas, para além disso, estamos numa época de polarização muito grande, em que tudo é ideologizado. Se uma pessoa não vive de acordo com o dogma do outro, vira inimigo”, afirma Carlos Tufvesson, coordenador especial da diversidade sexual do município.

Medo que cala

Os números são vestígios de uma realidade ainda subnotificada. Entre outros fatores, o medo de retaliação do agressor e da revitimização pelo Estado — que ocorre quando a vítima, ao procurar a ajuda do poder público, sofre uma nova agressão — afasta as mulheres da denúncia formal.

Foi o que aconteceu com X., até que uma vizinha a convenceu a ligar para o 180 — em abril, por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o serviço de atendimento da Lei Maria da Penha passou a acolher mulheres trans. Ela então foi encaminhada para o programa Rio Sem LGBTfobia, do governo estadual, que lhe deu assistência psicológica e jurídica.

O total de mulheres trans e travestis que precisaram do apoio jurídico do Rio Sem LGBTfobia nos primeiros cinco meses de 2022 é mais que o dobro do total registrado no mesmo período do ano passado: foram 889 casos este ano, contra 391 em 2021.

Os atendimentos jurídicos também englobam outras demandas, como retificação de nome. Mas a maioria dos chamados, de acordo com o coordenador do programa, Ernane Alexandre, decorre da violência — sobretudo na Baixada Fluminense, que concentra os casos mais graves de agressão:

“Vemos um número crescente de agressões a mulheres trans no contexto conjugal. Também há aquelas que são agredidas pelo cafetão no contexto de exploração sexual.”

Carlos Tufvesson explica que a dificuldade de inserção desse público no mercado de trabalho leva parte dele a recorrer ao trabalho sexual para sobreviver.

Este é o caso da profissional do sexo L. Ela conta que, em março, em meio a um desentendimento com uma colega, foi agredida com tapa e chute no meio da rua pelo homem que gere o ponto onde ambas trabalham. Uma viatura da Polícia Militar passou na hora, mas não atendeu a seu pedido de socorro.

“Fiquei desolada. Tenho medo de estar na rua e ele vir me agredir. Estou louca para conseguir um emprego. Participei de processos seletivos, mas é muito difícil”, conta.

Um longo caminho

Os dados apontam que 93% dos casos envolvem agressão física, sendo 80% com indícios de espancamento. Quase 70% dos agressores são do sexo masculino, e 47% dos casos são de violência reincidente. É grande a frequência de cônjuges (23%), desconhecidos (17%) e amigos ou conhecidos (15%) entre agressores. Além disso, mais da metade das vítimas é preta ou parda (53%).

A escalada do ódio foi notada pela advogada Feh Oliveira, especializada no atendimento à população LGBTQIA+.

“À medida que conquistamos mais visibilidade e mais direitos, vemos, em contrapartida, o crescimento de um discurso preconceituoso e discriminatório”, alerta.

A Secretaria estadual de Saúde (SES) reconhece que a falta de capacitação e sensibilização dos profissionais e a necessidade de desconstrução de preconceitos pessoais são entraves para o registro de casos de violência contra o público LGBTQIA+ no Sinan, compulsório em todas as unidades da rede.

Devido ao medo da retaliação — muito comum em áreas com grande influência do crime organizado, pontua a SES — o Sinan permite que os profissionais abram um registro por suspeita de agressão mesmo quando a vítima não relata violência. O acionamento da polícia não é obrigatório, mas os hospitais devem orientar a paciente a fazê-lo. Com frequência, o caso não passa das portas do hospital.

“Muitas pessoas têm vergonha de denunciar os crimes porque sabem que vão ter de expor em algum momento a sua orientação sexual ou identidade de gênero. E isso, somado ao despreparo dos agentes públicos, contribui para a subnotificação dos crimes. É o famoso achar que não vai dar em nada — diz Feh Oliveira.

Também escapam aos registros oficiais muitos casos em que a violência não deixa marcas aparentes, mas provoca traumas que se arrastam por toda a vida. Em julho do ano passado, a cabeleireira Rafaelly Alexandrino, de 41 anos, sofreu agressão verbal de desconhecidos dentro de um estabelecimento na Maré, na Zona Norte do Rio, onde mora.

“Eu estava tomando uma cerveja com uma cliente minha e tinha uns caras na mesa do lado. Um deles até começou a bater um papo com a cliente, e eu na minha. Fui pedir um balde e eles perceberam (que sou trans). E começaram a me agredir verbalmente, a ponto de as outras pessoas presentes intervirem. Um deles, bêbado, me chamou de lixo para baixo. Disse que a gente é um aborto da natureza, que a gente é homem vestido de mulher, que a gente deveria morrer. Minha reação foi só chorar”, conta.

Acolhimento

Coordenadora de Políticas e Ações Intersetoriais da Secretaria Municipal de Saúde do Rio (SMS), Elaine Monteiro diz que a pasta trabalha para que os profissionais tenham um olhar aguçado para possíveis casos de violência, de modo que as vítimas tenham o encaminhamento adequado.

“Entre nossas pacientes trans, a violência mais frequente é a violência doméstica, ocorrida no meio familiar ou cometida pelo próprio parceiro. Isso para todos os ciclos de vida”, destaca. “Dependendo do contexto da história que foi verbalizada, o ambiente de consulta é fundamental. Cria-se um vínculo entre o profissional de saúde e a paciente.”

Superintendente de Promoção de Saúde da SMS, Denise Jardim destaca a importância da articulação das redes de saúde com outros órgãos das esferas municipal e estadual:

“Não são o remédio e o exame que resolvem, é o acolhimento. Ver o que a paciente tem de necessidade. O hospital é a porta de entrada, mas também é porta de saída.”

Para denunciar a violência, mulheres trans têm à disposição, além do número 180, o Disque 100 (Direitos Humanos). No Rio, há também o Disque Cidadania e Direitos Humanos (0800 0234567), que funciona 24 horas por dia.

A Polícia Militar informou, por nota, que seus agentes, “desde a prova de ingresso até os cursos de formação e aperfeiçoamento, têm matérias pertinentes aos direitos humanos”. Já a Polícia Civil destaca que “o respeito à população é uma das diretrizes no atendimento público”.

Fonte: O Globo