“Temos um projeto que se chama Cumpra-se. Estou coordenando com advogados de todos os estados do país, com parcerias com o ministério público, defensorias, OAB, para que qualquer denúncia, é preciso ir para cima. Não tem que ter acordo para não processar. Se tiver crime, vai ter processo.

O Bolsonaro não inventou a homofobia e o patriarcado, ele só escancarou. Acho ótimo pessoas que saiam do esgoto e joguem esses preconceitos para fora, porque aí, nós vamos para a arena. E na arena todos estão vendo.

Eu sou obstinado, mas calmo e paciente. Discuto com o presidente da frente evangélica, tranquilamente. O fundamentalismo religioso é uma ameaça real aos direitos das minorias. O amor não é doença.”

Toni Reis nasceu em Coronel Vivida, no Paraná, em 1964, e enfrentou a homofobia, a igreja e a legislação brasileira para se tornar quem é hoje: um homem gay, cristão, casado com o inglês David Harrad e pai de três jovens.

Ele conta que o período que viveu dos 14 aos 20 anos foi terrível. “Eu não me sentia gente. Aos 14 anos, disse para minha mãe: ‘sou um anormal, um pecador, um criminoso’. Ela respondeu que ia me ajudar. E me levou ao médico”, conta.

Indo à missa desde criança, Toni também buscou aconselhamento com o padre da paróquia, que o orientou a fazer novenas de oração. E a cada “recaída”, ele deveria recomeçar o ciclo de orações. “A novena virou uma quarentena, porque nunca me curei de ser gay”, conta, rindo. Ele procurou igreja evangélica, umbanda, e pensou em suicídio ao menos três vezes nesse período.

“Isso me tornou uma pessoa indignada: não quero que nenhum adolescente passe pelo que passei.” E, assim, Toni decidiu lutar.

Theo Marques/UOL

Luta por um Estado laico

Aos 20, quando cursava Letras na Universidade Federal do Paraná, o mundo se abriu para Toni. No fim dos anos 1980, foi para a Europa. Morou na Espanha, na Itália, na França e na Inglaterra, onde conheceu seu marido, David. Em 1991, voltou para Curitiba, junto com David.

A imigração brasileira, no entanto, permite que estrangeiros passem apenas três meses como turistas no país. Ao fim desse período, devem ter um visto de permanência. E para ter isso, David deveria ter um contrato de trabalho com alguma organização que garantisse o emprego, por escrito, ou se casando com uma mulher brasileira, já que só em 2011 o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a reconhecer a união estável entre casais do mesmo gênero como entidade familiar.

David ficou ilegal por um período, acabou sendo preso em 1995 e recebeu um ultimato: tinha de sair do país em oito dias. “Choramos e avaliamos nossas possibilidades: ou enfrentaríamos o sistema ou nos mudaríamos para uma região remota do país, e seguiríamos ‘fugindo’. Nós decidimos lutar”, lembra.

E, então, enfrentaram o sistema. Toni já era um ativista e foi, em 1992, um dos fundadores do Grupo Dignidade, a primeira organização da sociedade civil paranaense voltada para a promoção e defesa dos direitos humanos da comunidade LGBTQIA+. Eles tiveram a ideia de organizar uma mobilização pública em torno do problema deles. “Bombou nos jornais, foram ao programa do Jô Soares, matéria do Fantástico. Conseguimos mobilizar o cônsul, embaixador da Inglaterra, a querida Ruth Cardoso e a então deputada Marta Suplicy.” Conseguiram uma saída “com o jeitinho brasileiro”: David foi contratado como tradutor com a ajuda de amigos do casal e pôde ficar no país.

Tudo é política e marketing

Especialista em sexualidade humana, mestre em filosofia e doutor e pós-doutor em educação, Toni sempre acreditou na importância da sociedade civil organizada para a definição de políticas públicas. Ele foi um dos idealizadores e principais impulsionadores da criação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), fundada em Curitiba em 1995. Foi eleito o primeiro presidente da instituição e reassumiu o cargo entre 2007 e 2012.

Foi em 1999 que Rafaelly Wiest conheceu Toni. Ela estava no fim da adolescência e começando a se entender como uma mulher trans. “Ele já era uma liderança importante em Curitiba. Ele e Harry haviam fundado o Grupo Dignidade. Nós criamos laços de amizade, e ele se transformou em uma figura paterna praticamente. Nossa relação se mistura com o trabalho ativista: até hoje sou conselheira consultiva do Dignidade e me tornei diretora administrativa do Aliança”, diz Rafaelly.

A luta seguiu para que políticas públicas fossem articuladas e os direitos de pessoas não heterossexuais e outros grupos minorizados sejam reconhecidos, e essas pessoas, acolhidas. Integra desde 2003 a Aliança Nacional LGBTI+, uma organização pluripartidária, sem fins lucrativos, que busca mobilizar a sociedade a defender os direitos humanos e a cidadania.

O grupo atua em proposições legislativas a respeito dos direitos humanos e cidadania plena das pessoas LGBTQIA+, acompanhando ações tramitando no Supremo Tribunal Federal e articulações no poder legislativo.

Toni Reis ao lado do marido, David Harrard, e dos filhos, Alysson, Jéssica e Filipe

Sete anos de gestação

Depois que decidiram ter filhos, partiram em busca de meios para adotar uma criança como um casal. Deram entrada na Vara da Infância e Juventude de Curitiba em 2005 para obter a habilitação para a adoção conjunta – o primeiro caso na cidade. Eles poderiam ter evitado a buracria e adotado como solteiros, mas se um deles falecesse o outro não teria o direito da guarda do filho automaticamente. Três anos depois, o juiz acatou o pedido, mas restringiu o gênero e a idade: teria de ser uma menina e maior de 10 anos. Eles entenderam que isso se tratava de homofobia e recorreram.

Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade que para os efeitos de lei a união estável entre casais homoafetivos haveria de ser igual à de casais héteros, abriu-se um novo caminho para a adoção conjunta. Em dezembro daquele ano, receberam a guarda de Alysson, 10. “Foi a gravidez mais longa da história. Fomos o primeiro caso de adoção de um casal homoafetivo do país pelo STF.” Em 2014, conheceram Jéssica, 11, e o irmão Filipe, 8, e os adotaram, juntos, um anos depois

O ativista também enfrentou a Igreja: as crianças disseram que queriam ser batizadas no catolicismo. “Fui ao arcebispo, pois o padre se recusou a batizar. Foi um batizado maravilhoso. Com as fotos e vídeos, fizemos um dossiê e enviamos ao Vaticano. Para nossa surpresa, recebemos uma carta assinada pelo Papa Francisco, em 2017, nos parabenizando e desejando felicidades para nossa família.”

Do casamento à adoção dos filhos, Toni e David enfrentaram também ameaças de morte, que chegavam semanalmente pela internet. “É preciso ter estratégia para muitas coisas, diálogo, mas se a pessoa cometeu um crime, não é mais comigo. A Policia de Crimes Cibernéticos descobriu quem era o rapaz. Ele irá pagar uma multa de R$ 17 mil e ficará preso por cinco anos.”

Theo Marques/UOL

Em defesa da família

A vida de Toni e sua família é emaranhada com a política e o ativismo. A definição do que é uma “família”, inclusive, foi tema de discussão por longas horas com o pastor Silas Malafaia.

Toni faz questão de conversar com todos. Inclusive a ministra Damares Alves, a quem conhece desde 1999, quando ela criou a frente parlamentar evangélica. “Hoje, seguimos debatendo, pois ela representa o Estado. Mas não admito discurso de ódio e preconceito”, diz. Toni conta que entrou com processo contra o ministro da Educação por afirmar que pessoas LGBTQIA+ eram fruto de “uma família desestruturada”. “É um processo educativo, em que alguns aprendem com o diálogo, outros com manifestações, e outros com uma multa de R$ 200 mil — pesada, até mesmo para um ministro.”

Toni vê o quanto o Brasil avançou nos direitos, principalmente no poder Judiciário, com algumas conquistas via Supremo Tribunal Federal. Mas no Legislativo, segundo ele, temos o fundamentalismo, “que nos deixa atrasados em relação a países latinoamericanos”. Mas ele tem esperança.

“Quero deixar o mundo muito melhor do que peguei em termos de Direitos Humanos, ecologia. Eu quero dar palestras e escrever. Temos um Manual de Comunicação, do Cristianismo LGBTI+, Como conversar com adversários, aliados e pessoas não mobilizadas”, finaliza.

Fonte: ECOA (UOL)