Além dos aspectos clínicos e biomédicos de cuidados com a saúde, a abordagem das políticas públicas devem abordar os contextos biopsicossocioculturais dos indivíduos e comunidades originárias

Em 19 de abril é celebrado no Brasil o Dia dos Povos Indígenas, que são responsáveis por proteger um terço das florestas do país através do uso sustentável de suas terras e serem os maiores oponentes ao desmatamento ilegal. Vítimas de um dos maiores genocídios da história da humanidade pela colonização portuguesa iniciada em 1500, os indígenas chegaram a ter mais de 80% de seu povo eliminado até 1600. Segundo o Censo Demográfico 2022 divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população indígena atual é de 1,7 milhão de pessoas, o que representa 0,83% da população total do país, distribuída entre 305 etnias que falam 274 idiomas distintos.

Devido a diversos desafios relacionados ao acesso à saúde como a localização remota, barreiras linguísticas e culturais, falta de infraestrutura e desigualdades socioeconômicas, os povos indígenas são considerados vulneráveis a diversas doenças e infecções, inclusive o HIV/aids.

O estigma e preconceito em relação ao vírus é ainda mais desafiador entre a população indígena. Segundo a enfermeira Indianara Machado, primeira indígena a concluir mestrado no Programa de Pós-Graduação em Fisiopatologia Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), isso se deve porque o HIV é considerado um fenômeno social total, indo além da dimensão puramente individual. A maneira como os povos indígenas lidam com a saúde englobam questões sociais, culturais e emocionais. Em sua dissertação, intitulada “Análise interdisciplinar e intercultural sobre as pessoas vivendo com Vírus da Imunodeficiência Humana e a Síndrome da Imunodeficiência na população Guarani da Terra Indígena de Dourados em Mato Grosso do Sul”, ela explica que o aparecimento da infecção pelo HIV dentro das aldeias indígenas transforma e muda a maneira como essa doença é vista pela biomedicina. “São universos simbólicos que se entrecruzam, porém não na mesma dinâmica, na mesma velocidade e, principalmente, na mesma situação de poder. Há um diálogo assimétrico entre o entendimento ocidental e o universo simbólico Guarani. Universos multiculturais que são tratados, pela visão dominante, como unilaterais”.

“É urgente que a biomedicina reconheça e valorize outras concepções de saúde e doença, buscando estabelecer um diálogo equitativo, promovendo uma maior adesão aos tratamentos propostos. Isso requer uma abordagem sensível e inclusiva, respeitando as perspectivas culturais e os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas”, afirma a estudiosa. Para ela, “a ausência de coleta de dados adequada no sistema de saúde indígena evidencia uma deficiência significativa, resultando em políticas públicas que não atendem às necessidades específicas dos povos indígenas”.

Confira a entrevista completa com a estudiosa.

Agência Aids: Por que você dedicou seu estudo de mestrado ao HIV/aids?

Indianara Machado: Existe uma necessidade de compreensão mais ampliada dos fatores relacionados à infecção pelo HIV e a aids. Vejo que as populações indígenas são as principais afetadas pelas doenças negligenciáveis, sendo assim, a Pós-Graduação em Fisiopatologia Experimental me deu suporte ao desenvolvimento de modelos experimentais e privilegiar abordagens inter e transdisciplinares para investigar aspectos fisiopatológicos de doenças. Levar em consideração como o aparecimento da infecção pelo HIV dentro das aldeias indígenas transforma e ressemantiza a maneira como essa doença é vista pela biomedicina. São universos simbólicos que se entrecruzam, porém não na mesma dinâmica, na mesma velocidade e, principalmente, na mesma situação de poder. Há um diálogo assimétrico entre o entendimento ocidental e o universo simbólico Guarani. Universos multiculturais que são tratados, pela visão dominante, como unilaterais. Tudo se caracteriza através de um processo de hibridação.

Quais são os estigmas e tabus associados ao HIV/aids dentro das comunidades indígenas e como eles impactam a busca por prevenção e tratamento?

A doença é entendida como resultado do afastamento da alma (Nhe’e) e pode levar à morte através do espírito do mal (Añã). A infecção por HIV é vista como algo ruim, sujo e impuro, revelando o desrespeito às regras do tekoha e representando uma ameaça à comunidade como um todo. Um dos principais sintomas das pessoas vivendo com HIV é a manifestação da “ĩvy’areỹ” (estar triste/ vy’areỹ), resultando em uma mudança drástica do comportamento social, com o afastamento das pessoas mais próximas, emudecimento e isolamento devido à exclusão social da comunidade. O medo de contágio gera um processo de estigmatização social que resulta em expulsão e morte social. Tanto a comunidade quanto a pessoa vivendo com HIV experimentam sentimentos de medo, nojo e vergonha. A aceitação passiva revela sua condição de “não-ser” guarani (teko) e, portanto, não pertencer mais ao Tekoha, submetendo-se a todas as formas de violência, até o total abandono.

Como a cultura e as tradições indígenas influenciam na percepção e na abordagem em relação ao HIV/aids dentro das comunidades?

Na perspectiva Guarani, doenças são frequentemente percebidas como agressões originadas tanto de fontes humanas quanto não humanas. Essas agressões podem manifestar-se metafisicamente, por exemplo, através de ventos denominados “yvytu vai” ou podem ser atribuídas a entidades da natureza, como florestas, rios e cachoeiras. Esse entendimento contrasta notavelmente com a concepção comumente ocidentalizada de doença, frequentemente designada na linguagem Guarani como “doença de jurua” ou “karaí mba’asy”. Tais afecções, na cosmovisão Guarani, são persistentes e requerem intervenção contínua de xamãs qualificados. Em várias culturas ameríndias, a doença e a morte prematuras não são consideradas eventos naturais, mas sim consequências de diversas formas de alteridade, incluindo práticas de feitiçaria. Assim, a doença é a dissociação entre a alma e corpo; a doença, assim como a saúde, corresponde a uma variedade de elementos existentes no mundo e a vários estados possíveis que envolvem o corpo e a alma além de outras formas não-humanas. Algo que talvez poderíamos expressar uma possível amplitude seria o “mal”. Os males que existem no mundo e impedem a alegria do homem são vistos e denominados pelos Guarani como doenças. Para os Guarani Ñandeva, os homens possuem uma alma que é denominada pelo conceito nhe’ẽ. Ela é responsável pela condução do indivíduo a viver de maneira correta a vida; tal maneira também é condição para que a alma permaneça junto do sujeito. O afastamento da nhe’ẽ leva a pessoa ao adoecimento ou, até mesmo, à morte. Nesse sentido, principalmente em relação a visão ocidental e biológica da saúde não pode ser pensada como sendo naturalizada, é essencial o reconhecimento de outras concepções de saúde e doença, morte e vida, bem-viver como formas de estar e viver no mundo diverso.

Quais são os principais desafios enfrentados na implementação de programas de prevenção e tratamento de HIV/AIDS específicos para a população indígena no Brasil?

Não há uma explicação única, mas uma somatória de fatores, deve-se considerar as desordens biosociocultural que se estabelece no processo de adoecer, a desordem/mal-estar não se restringe a pessoa doente, mas abrange os contextos socioculturais e individuais da comunidade. Sabe-se que o profissional de saúde influenciará na adesão ao tratamento, na medida em que atingir o universo cultural do paciente e estabelecer com ele um nível de comunicação e de relacionamento que sejam efetivos. Dessa maneira é possível intervir de maneira mais eficaz, a fim de oferecer um cuidado integral que englobe todas as dimensões do sujeito. A falta de adesão ao tratamento é influenciada por uma série de fatores complexos e inter-relacionados. Além dos aspectos clínicos e biomédicos do tratamento, é essencial considerar os contextos biopsicossocioculturais dos indivíduos e comunidades Guarani.

Marina Vergueiro (marina@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Indianara Machado – Instagram @indykaiowa