A Política Nacional de Humanização foi criada em 2003 pelo Ministério da Saúde e atua de forma integrada com outras políticas de saúde para melhorar a qualidade da atenção e gestão no SUS. Ela nasceu da necessidade de aprimorar o sistema nacional de saúde, a relação e os processos de atenção aos usuários e apoiar o trabalho de gestores e profissionais da área, reconhecendo a individualidade e a capacidade criativa de cada pessoa envolvida.

Essa política é fundamentada em três princípios: a inseparabilidade entre a atenção e a gestão dos processos de produção de saúde, a transversalidade e a autonomia e protagonismo dos indivíduos. Ela está em constante evolução, resgatando os princípios do SUS e é construída coletivamente, envolvendo o governo federal, bem como as instâncias estaduais e municipais. Para que a humanização se concretize, é essencial que todos os participantes dos processos de saúde se vejam como protagonistas e corresponsáveis por suas práticas, garantindo a universalidade do acesso, a integralidade do cuidado e a equidade nas ofertas de saúde.

Para entender melhor a aplicação da Humanização no Estado de São Paulo, conversamos com a Articuladora do Núcleo Gestor de Humanização e Segurança do Paciente, Thaís Cristina Coelho Habib, que atua há uma década na implementação e desenvolvimento da política estadual de saúde e humanização, lançada em 2012, assegurando que as melhores estratégias e processos sejam discutidos com profissionais da saúde de todas as áreas e aplicados para melhorar o cuidado com a população. Segundo Thaís, a política de humanização é bastante forte e exitosa em São Paulo, mas ainda precisa de visibilidade e reconhecimento tanto de profissionais do SUS quanto de usuários. “Aqui no Estado de São Paulo temos uma organização muito forte para implementar os princípios do SUS: a universalidade, a equidade e a integralidade”, afirma.

Com uma estrutura bem organizada, o Núcleo conta com articuladores e apoiadores que atuam em todos os 17 departamentos de saúde do Estado.  Como articuladora da região norte do município de São Paulo, Thaís é responsável por apoiar os serviços Estaduais desta área, trabalhando em estreita colaboração com outros articuladores das diferentes regiões da cidade, como sul, leste, centro-oeste e sudeste. Este modelo de organização, visa atender às especificidades de cada região, considerando as particularidades e desafios únicos de cada uma. Ela destaca, ainda,  a importância do trabalho em rede, onde cada articulador possui um apoiador no Núcleo Técnico, garantindo um suporte contínuo e eficaz para os processos de humanização e segurança do paciente em toda a cidade e Estado.

Confira a entrevista a seguir:

Agência Aids: O que é exatamente o serviço de humanização do SUS?

Thaís Cristina Coelho Habib: A humanização é uma política do Ministério de Saúde que tem diretrizes federais e aqui no Estado de São Paulo temos uma organização muito forte para implementar os princípios do SUS: a universalidade, a equidade e a integralidade. Queremos fazer com que isso aconteça realmente na prática, por meio das diretrizes da humanização, do acolhimento, da clínica ampliada, dos direitos dos usuários e das redes, porque o SUS é uma rede de serviços e pessoas. Tentamos fazer com que essa rede seja mais viva, que ela aconteça na prática e não esteja somente escritas nas portarias. É uma política transversal, que perpassa as políticas de saúde mental, de saúde da mulher, de saúde do idoso, de urgência e emergência e todas as redes de cuidado.

Como a humanização no atendimento pode contribuir para a saúde integral dos pacientes do SUS?

Trabalhamos muito com as equipes o encontro do paciente com o profissional de saúde e essa relação. A humanização aposta que a gestão está diretamente ligada ao jeito que se faz a atenção e a assistência ao paciente. Então, quanto melhor for essa relação, maior a chance do cuidado em rede que o SUS oferece funcionar, afinal o usuário percorre vários serviços de diferentes gestões. Uma das coisas que mais fazemos é chamar esses serviços para se conectarem e conversarem. Nosso modelo de saúde está muito baseado na queixa e conduta, então se o paciente chega com uma queixa de dor e o profissional de saúde tiver um olhar mais ampliado, ele vai entender que aquela dor está dentro de um contexto, que não é somente o CID, que é o código da doença. Isso faz parte da integralidade do cuidado.

Quais são as principais estratégias adotadas pelo Departamento de Gestão de Humanização para promover um atendimento mais humanizado nas unidades de saúde do SUS?

Temos apoiadores que estão na ponta, nos territórios, que vão nos serviços e que conhecem a realidade. Eu acho que esse é um ponto importante e diferencial. Vamos ao serviço de saúde não no sentido de uma auditoria ou de fiscalização, mas de compor e  tentar pensar em conjunto como essa equipe pode cuidar melhor. Também apostamos muito na grupalidade e tentamos trazer a gestão para o coletivo, para que tenhamos diferentes olhares para pensar como o serviço pode funcionar melhor. Muitas vezes temos acesso a indicadores duros e numéricos, mas começamos a provocar sobre o cuidado das pessoas e o acompanhamento dos pacientes. Às vezes, o indicador não vai mostrar o que o paciente passa ao entrar no serviço. Então criamos espaços de reuniões para pensar e processar nosso trabalho. Tudo isso são estratégias muito desafiadoras numa lógica de atendimento em massa, já que a demanda é muito grande. Mas, como a gente consegue cuidar bem das pessoas dentro das condições que temos? Na gestão participativa, chamamos os funcionários que estão ali diretamente lidando no cuidado para repensar o seu processo de trabalho e, se o gestor estiver atento, é necessário mudar alguns processos. Inclusive, trazer o próprio usuário para contar sua experiência, não somente numa pesquisa de satisfação, mas em detalhes de como foi receber esse serviço.

Você pode compartilhar alguns exemplos concretos de iniciativas de humanização que tiveram um impacto significativo na segurança e no cuidado dos pacientes?

Temos um assento no grupo estadual que cuida da população LGBT+ no sentido de melhorar o acolhimento dessas pessoas, seja no recorte do nome social, no local de internação, entre outros desafios. E trazemos essas problemáticas para a equipe dos serviços também discutirem, pois às vezes não entendem direito porque a pessoa tem que ficar na enfermaria masculina ou feminina, mesmo isso sendo um direito, bem como serem chamadas pelo nome social. Temos o exemplo de um homem trans que não teve seu nome social respeitado e ainda ficou entre mulheres com um avental rosa enquanto aguardava um exame de ultrassom, constrangendo principalmente a ele, mas também às pessoas que estavam lá. Então, precisamos repensar esse processo: por que deixar todo mundo junto? Por que não pensar num processo que não desconsidere a singularidade de cada um? Inclusive, essa é  outra aposta da humanização: tratar a singularidade e as vulnerabilidades de cada pessoa, considerá-las no cuidado. Respeitar essa singularidade nos serviços é um desafio, fazer com que as equipes entendam a importância disso. Outra questão é a enfermaria. Muitas vezes mulheres trans são colocadas na enfermaria masculina. Não adianta respeitar o nome social se na hora de internar ela acaba ficando numa enfermaria com homens. E também não é aceitável colocá-la no isolamento. Como mudamos o procedimento? Aquela pessoa se identifica como mulher e ela vai ficar junto das mulheres. Aí aparece muito “ah, mas as pessoas vão achar estranho. Ah, mas vai ter idosos”. Uma assistente social de um serviço que eu acompanhava falou que uma mulher trans fez um vínculo muito forte e afetivo com uma idosa que também estava internada. E elas se cuidavam muito uma da outra.

Dizem que o idoso vai ter mais preconceito, mas não é sempre assim, temos que experimentar. Apostamos muito na questão da rede socioafetiva, de inclusão da família, da igreja, dos amigos, do paciente sempre estar junto de um acompanhante.

Quais são os maiores desafios na implementação dessa abordagem humana e integral da saúde?

Eu acho que uma das questões primordiais é fazer com que o profissional esteja mais aberto a essa relação, a esse encontro do que é diferente dele. Vemos muitos estigmas e preconceitos. Então, quem está ali atendendo na porta tem que se permitir conectar com a vida daquela pessoa solicitando o serviço, que muitas vezes é muito diferente da dele. Outro desafio é a lógica de número, de atendimentos muito rápidos e do tempo de atendimento. É preencher prontuário, atender, fazer exame. Então, assim, são muitas coisas para um tempo restrito. Então, a gente vê muito o modelo de gestão em que a produtividade acaba se sobrepondo ao cuidado e isso é uma lógica muito difícil de ultrapassar. Existe também a questão da fragmentação do cuidado: temos muita dificuldade na comunicação interna e externa dos serviços.

A humanização quer produzir redes e produzir vidas porque o cuidado não está pronto, ele está sendo produzido no cotidiano do trabalho com todos os atores envolvidos no processo: o serviço, o gestor, o paciente… e a ideia é que a gente produza potência independente da doença. Não cuidamos de doença, mas de pessoas.

Marina Vergueiro (marina@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista:

Thaís Cristina Coelho Habib

E-mail: thais.coelho@gmail.com