Casos depois dos 60 anos são influenciados por problemas de saúde e isolamento social

Na faixa etária acima dos 60 anos, a taxa de brasileiros que tiraram a própria vida saltou de 6,8 a cada 100 mil habitantes em 2010 para 7,8 em 2019, de acordo com boletim epidemiológico divulgado no ano passado pelo Ministério da Saúde. Neste período, os idosos representaram 15,2% do total de 112.230 mortes por suicídio no país. O estudo se baseia em dados registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).

Discutir a saúde mental de quem tem 60 anos ou mais torna-se ainda mais relevante em decorrência do número crescente de idosos. Os brasileiros nessa faixa etária representavam 14,7% da população em 2021, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em julho. Em números absolutos, são 31,2 milhões de pessoas. O mesmo levantamento aponta que o contingente de idosos habitantes no Brasil aumentou 39,8% nos nove anos anteriores.

Até o final deste mês, a Associação Brasileira de Psiquiatria, em parceria com o Conselho Federal de Medicina, divulga a campanha Setembro Amarelo, com o objetivo de conscientizar e prevenir o suicídio.

No caso particular dos idosos, um dos fatores motivadores para a consumação do ato envolve o chamado sentimento de “menos valia”, segundo especialistas. Isso ocorre quando há a noção persistente de que a pessoa se tornou um peso para a família, seja por limitações físicas, econômicas ou a convivência com doenças crônicas e incapacitantes. O isolamento social, agravado pela pandemia de Covid-19, passou a entrar nessa conta em tempos recentes.

Último ato

“Me desculpem, mas não deu mais. A humanidade não deu certo”, escreveu o ator Flávio Migliaccio em sua carta de suicídio.

Migliaccio construiu carreira extensa, com atuação em 46 atrações da TV Globo, entre novelas, séries e minisséries, e interpretou personagens de sucesso. Seu último trabalho foi na novela “Órfãos da Terra”, em 2019. Em 2020, aos 85 anos, passou a integrar as estatísticas de suicídio entre idosos no Brasil.

“Ele sempre me dizia que não aguentava mais viver num mundo como esse e sentir seu corpo deteriorar-se rapidamente e irreversivelmente pela idade avançada. Pouco escutava e enxergava”, escreveu o jornalista Marcelo Migliaccio, filho do ator, em suas redes sociais à época da morte. ‘Daqui para frente só vai piorar’, ele me dizia enquanto eu buscava todos os argumentos possíveis para lhe mostrar que ainda havia muita coisa boa reservada para ele”, relatou Marcelo.

Além de doenças e perda da sensação de pertencimento a um núcleo familiar e social, há vários outros fatores geralmente em jogo — da dependência de álcool a questões cerebrais.

—Algumas mudanças nas estruturas e circuitos do cérebro que são envolvidas em controle emocional podem deixar os idosos mais suscetíveis à depressão e outras doenças. É uma fase em que surgem as perdas, não só por morte de um ente querido, mas pela questão financeira e a disfunção social. Isso tudo deixa o idoso mais vulnerável aos transtornos depressivos — diz Samoara Barbosa, especialista em psiquiatria geriátrica.

Nos quadros depressivos, há ainda o risco de subnotificação, pois em idosos a condição pode ser confundida com outras doenças ou condições características da faixa etária. Enquanto nos mais jovens os sintomas são tristeza e desinteresse, nos idosos é comum haver reclamações de tontura, dores, insônia e falta de energia e apetite.

— Uma queixa comum, que confunde por ser algo comum à idade, é o déficit cognitivo — afirma o psiquiatra Ariel Lipman.

— A maior dificuldade em fazer diagnóstico no idoso é que muitas vezes seus sintomas são encarados como algo normal da idade — completa.

Em busca de respostas

Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo acredita que os sintomas depressivos são hoje o principal fator de risco para suicídio entre idosos.

—Temos o desafio de definir uma estratégia prática no nosso sistema de saúde que permita a detecção precoce e o tratamento eficaz de quadros depressivos em idosos — afirma.

O tratamento vai desde a psicoterapia até a intervenção medicamentosa, mas a qualidade de vida facilita o processo de cura. Ampliar a rede de suporte social e familiar e estimular à prática de exercícios físicos e mentais são indicados.

— Em 2020, a Assembleia Geral da ONU declarou esta como a Década do Envelhecimento Saudável, e não existe envelhecimento saudável sem saúde mental. Para isso, o idoso precisa de assistência de saúde com atenção integrada e que atenda todas suas necessidades — defende Samoara Barbosa.

A percepção de um comportamento fora do convencional pode representar a chave para um diagnóstico correto. Quando há negação ou repressão a uma reivindicação, muitas vezes o idoso não voltará a pedir novamente. Do ponto de vista psicológico, o maior ponto de preocupação é quando não existe qualquer tipo de comunicação.

— É preciso trabalhar prioritariamente a partir da fala e dos sentimentos dos idosos, e não o que cada um acha que seja um idoso bem comportado ou uma velhice correta. Quantas coisas sabemos que são corretas e não as fazemos? Por que isso será diferente com os velhos? — indaga Ruth Gelehrter Lopes, fundadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (Nepe) da PUC-SP.

Os dois grupos psicoterapêuticos de idosos que funcionam na clínica psicológica da PUC atendem 14 pessoas com mais de 60 anos, das mais diversas classes econômicas. Entre homens e mulheres, há analfabetos e acadêmicos, médicos e donas de casa, todos em busca de manter uma vida saudável durante a velhice.

Fundado nos anos 2000, o grupo atende gratuitamente. Na maioria dos casos, um parente ou profissional encaminha os pacientes à clínica.

—Temos idosos de todos os segmentos socioeconômicos à procura de uma outra vida na velhice. Querem entender seus diagnósticos, impor limites aos filhos, viver dignamente dentro do perfil econômico que eles encaram. Além de reelaborar a ideia de vulnerabilidade, porque têm mais chances de sofrer golpes e violências diárias — explica Ruth Gelehrter.

Apesar da existência de serviços públicos como Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Centro de Valorização da Vida (CVV) e Centros de Convivência do Idoso (CCI), os profissionais da área entendem que o Estado deveria dispor de mais iniciativas para estimular a pessoa idosa a sair de casa, como melhorias na mobilidade urbana.

— Se você pegar, por exemplo, os dados demográficos da cidade de São Paulo e comparar com Paris, não é muito diferente. Mas lá você encontra idosos na rua. Quando não se tira o velho de casa, ninguém vê e se esquecem dele, né? — finaliza Ruth.

Fonte: O Globo