Uma das principais vozes da ciência durante a pandemia de Covid-19 no Brasil, médica Margareth Dalcolmo avalia situação pós-crise e desafios para o futuro da saúde brasileira
A médica e pesquisadora Margareth Dalcolmo foi uma das principais porta-vozes da ciência brasileira durante a pandemia de Covid-19. Especialista em doenças pulmonares e presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), ela apareceu em diversos programas de TV e colunas de jornal para alertar a população sobre os riscos e as maneiras de evitar a infecção.
Hoje, mais de três anos desde a emergência — que teve seu fim declarado em maio pela Organização Mundial da Saúde (OMS) —, Dalcolmo passa a limpo a atuação da saúde pública do país nesse período. “O SUS, que seria a nossa grande força, se encontrava em situação bastante desorganizada, com baixo financiamento. Acho que isso, de certa maneira, desnudou sua força e a necessidade de investimentos”, pontua.
À frente da SBPT e como pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), atualmente Dalcolmo se dedica a ajudar no que ela chama de reconstrução do Ministério da Saúde, que para ela sofreu uma “terraplanagem” — não só pela pandemia, mas pelos direcionamentos do governo Bolsonaro. Situação que se reflete em problemas como queda na cobertura vacinal, aumento de mortalidade em doenças imunopreveníveis e disputas pelo controle político da pasta. “Nós tivemos que reconstruir programas que sofreram muita descontinuação de ações. Um exemplo foi o Programa Nacional de Imunizações, que eu considero paradigmático, porque o Brasil sempre teve uma tradição não só de adesão, mas de confiança no processo de vacinação”, explica a médica.
Em entrevista a GALILEU, Dalcolmo fala sobre como o SUS saiu fortalecido da pandemia e de que forma a saúde pública do Brasil se compara à de outros países, além de quais são os desafios da saúde privada e o que esperar do futuro — tanto em termos de novas tecnologias para a medicina quanto em relação a possíveis novas pandemias.
A senhora foi uma figura muito ativa ao longo da pandemia de Covid-19. Agora que finalmente ultrapassamos esse período, que lições ficam?
Acho que a pandemia revelou de maneira muito clara todo o poder do SUS. Mas encontrou o SUS e toda a estrutura de saúde no Brasil não exatamente enfraquecida, mas muito desorganizada em vários setores, mais na saúde pública do que na saúde suplementar. Todos estávamos despreparados para uma pandemia dessa magnitude. O SUS, que seria nossa grande força, se encontrava em situação bastante desorganizada, com baixo financiamento.
Acho que isso, de certa maneira, desnudou sua força e a necessidade de investimentos. Saúde e economia são coisas que andam muito juntas historicamente. Então vejo que a pandemia, em resumo, mostrou realmente um retrato que não era bom, mas trouxe um estímulo ao investimento.
Na sua visão, que impactos a crise teve na saúde do Brasil?
A pandemia teve um impacto muito grande sobre doenças endêmicas, como malária e tuberculose. A situação da tuberculose foi realmente uma catástrofe, aumentou o número de mortes e a incidência pelo não funcionamento dos serviços durante esse período. Por outro lado, o Brasil é um país de paradoxos de todas as maneiras.
Acho que houve coisas ruins e coisas muito boas também, como a nossa capacidade de resposta, vencendo adversidades, inclusive a própriaretórica governamental, que foi uma catástrofe. Trabalhamos o tempo inteiro construindo ações, atitudes, defendendo conceitos e procedimentos; por outro lado, desconstruindo informações que eram muito nocivas e confundiam uma população amedrontada por força de uma pandemia.
E como você avalia o que vem sendo feito pelo novo governo até o momento?
Em primeiro lugar, o governo precisou reformar a casa. O Ministério da Saúde estava completamente desmantelado. O que foi feito dentro do sistema de saúde foi o que eu chamaria de uma terraplanagem. Tivemos que reconstruir programas que sofreram descontinuação de muitas ações. Um exemplo foi o Programa Nacional de Imunizações [PNI], que eu considero paradigmático porque o Brasil sempre teve uma tradição não só de adesão, mas de confiança no processo de vacinação. Desde sua criação, na década de 1970, o PNI nasceu vencedor.
Recentemente, houve a primeira reunião presencial da Câmara Técnica de Imunizações do Ministério da Saúde, da qual eu participei. Foi uma reunião muito simbólica, por ter sido a primeira presencial depois desse longo período, e por ter enfrentado desafios muito grandes, por exemplo discutir sobre questões prioritárias em relação à vacinação, como a vacina BCG para os recém-nascidos e a vacina HPV para nossos adolescentes e adultos jovens.
E o que se decidiu eu considero muito correto: há um exaurimento nesse modelo de fazer campanhas de vacinação. Hoje, o investimento que vamos fazer é na micro-organização, organizar por regiões. E nessas regiões, então, fazer o financiamento para organizar multivacinação em áreas determinadas. Esse novo modelo me parece muito criativo e correto.
Que outros desafios temos pela frente?
Os desafios continuam os mesmos, porque isso tudo começou a ser feito recentemente. Você reconstruir tudo que estava fragilizado é difícil. Além disso, temos a questão do financiamento na área de tecnologia e inovação, que se enfraqueceu de uma maneira absurda. Hoje, há toda uma reconstrução dos processos de financiamento junto ao Ministério da Ciência e Tecnologia e aos órgãos de fomento.
Não podemos continuar a permitir de uma maneira passiva esse êxodo, essa diáspora de cérebros que o Brasil vem tendo, de pessoas que vão embora. É muito triste quando vou a uma banca de doutorado e vejo aquele candidato já com passagem comprada para fora, só esperando obter o título, por não encontrar no Brasil condições adequadas de desenvolver pesquisa. Seria muito importante entender isso e oferecer condições para que as pessoas fiquem no país, produzindo conhecimento que possa ser voltado para o bem comum, não só na saúde, mas na economia e nas ciências humanas.
Durante o governo Bolsonaro, o ministério da saúde passou a ser fortemente usado como ferramenta político-ideológica, principalmente corroborando ideias anticiência. Agora, novamente vemos uma pressão por parte do centrão pelo controle da pasta. Como você avalia essa disputa?
No momento em que essa reconstrução é fundamental para o Brasil, considero abjeto que essa disputa se faça dessa maneira. Mas é fácil de se entender por quê: o Ministério da Saúde tem um enorme orçamento, o maior em termos de emendas parlamentares que podem ser eventualmente oferecidas para estados e municípios. O que não é plausível é aceitar que essa disputa ocorra quando todo o processo de reorganização interna da estrutura do Ministério da Saúde está sendo feito de maneira tão cuidadosa.
É inaceitável que haja essa disputa, criando uma tensão desnecessária no momento em que precisamos voltar todas as nossas energias, concentração e força nesse processo de reconstrução, de participação do Brasil em fóruns nacionais e internacionais de novo.
O SUS, que já era conhecido e respeitado internacionalmente, ganhou muito destaque entre os brasileiros na pandemia. Quais os principais pontos positivos do nosso sistema público de saúde?
É preciso entender e reiterar que o SUS é o maior sistema de saúde pública do mundo, considerando que ele é virtualmente capaz de atender a 80% da população brasileira. Ele tem como vantagens a equidade e a acessibilidade a todo mundo. E capilaridade, pois está em todos os locais. O SUS também é o financiador de procedimentos de alta complexidade, como os transplantes. Quem é responsável pelo controle da fila de candidatos ou de doadores? Quem faz a logística para buscar o órgão? Quem financia? Quem dá condições? O SUS. Por mais que aquela pessoa tenha um seguro privado, ela depende do SUS para isso.
É preciso entender e reiterar que o SUS é o maior sistema de saúde pública do mundo”
— Margareth Dalcolmo ressalta a importância do sistema público para o enfrentamento à Covid-19
O que precisamos agora é entender como um país diverso e enorme como o Brasil tem que organizar essa estrutura hierárquica de atendimento de acordo com cada região. Não há dúvida de que isso é possível. Só que dá trabalho. Não é algo que vai se fazer em um ano de governo. Isso vai levar um tempo maior, porque passa por acordos.
A pandemia mostrou que parceriaspúblico-privadas funcionam. Como o Todos Pela Saúde, com aquele primeiro bilhão [de reais] colocado pelo banco Itaú [em 2020]. Isso foi algo extraordinário, porque criou uma cultura de doação, coisa que nunca tivemos. O Todos Pela Saúde financiou projetos, inclusive contribuiu na Fiocruz para o nosso hospital, para o processo de produção de vacinas.
Então, o Brasil mostrou uma pujança e uma capacidade de resposta muito grandes. E foi a capilaridade do SUS que permitiu, a despeito de todas as dificuldades, que tenhamos conseguido vacinar um percentual grande da nossa população.
Recentemente, vimos embates entre planos de saúde e problemas na cobertura do sistema privado. Como se dá essa dinâmica entre saúde pública e particular no país?
A saúde suplementar é um direito. Seguros privados permitem que possamos ser tratados na rede particular, paga pelas seguradoras de saúde. Essa relação não pode ser, a meu juízo, predadora. Saúde é muito caro. Os procedimentos são muito caros. Os preços praticados no Brasil são muito caros quando comparados com outros locais. Então, isso ainda carece de uma revisão. O critério de utilização dosseguros de saúde, de solicitação de exames, tudo isso também precisa de uma certa revisão que vem desde a formação do médico.
Hoje, quando observamos o percentual de exames que são pedidos pelos seguros de saúde e vemos que praticamente 80% [dos resultados] é normal, percebemos que provavelmente muitos desses exames são pedidos de maneira desnecessária. Isso encarece o sistema e cria essa relação que eu considero perversa. O seguro aumenta o preço, aumenta o custo, e isso vai criando uma relação que, a meu juízo, não é saudável. Deveria haver um critério no entendimento das pessoas de que o fato de elas pagarem um plano de saúde não quer dizer que elas tenham que ficar fazendo exames desnecessários.
Para ter uma renda, um médico credenciado por um plano de saúde precisa fazer um número enorme de atendimentos. Ninguém pode fazer um bom atendimento de saúde numa consulta de 15, 20 minutos. Isso não existe. Não é isso que fazemos, não é essa medicina que queremos.
Nos últimos anos, temos observado uma queda na cobertura vacinal e o aumento de condições como obesidade e transtornos de saúde mental.
Quais as principais doenças que acometem os brasileiros hoje?
O Brasil é um país de paradoxos. Porque a grande causa de mortalidade aqui é a doença cardiovascular, como nos países desenvolvidos. Mas também temos alta mortalidade por câncer e tuberculose; por doenças imunopreveníveis. E um dado que faço questão de deixar registrado: nas últimas décadas, tivemos algo muito marcante, um aumento da expectativa de vida ao nascer de 54 para 76 anos. É preciso que todos entendamos isso: o que fez essa diferença em tão pouco tempo? Vacina. Não foi outra coisa. Porque a redução damortalidade infantil, a redução da mortalidade até 5 anos de idade, foi graças à vacina.
Você poderia dizer “não foi saneamento básico?” Claro que não: 40% do Brasil não têm saneamento básico. Foi uma cobertura vacinal das doenças imunopreveníveis, além do melhor uso de remédios, acesso a antimicrobianos. Mas sabemos também que o Brasil é um dos países com as maiores taxas de uso inadequado de remédios antimicrobianos, antibióticos. Há uma liberalidade no uso desses medicamentos que também precisa ser revista.
“A pandemia provou de maneira muito exemplar que a telemedicina tem que ser regulada e incentivada, porque ela ajuda muito”
— Dalcolmo analisa a importância da tecnologia no atendimento médico
O avanço na tecnologia, como a inteligência artificial, promete ter impactos também na medicina. O país está preparado para lidar com essas novas ferramentas?
Ele está preparado, mas de maneira desigual. A inteligência artificial não pode ser vista como uma abstração milagrosa. Ela não substitui o trabalho humano, porque ela depende de um bom raciocínio, de uma boa racionalidade para sua concepção e execução. Além disso, a pandemia provou de maneira muito exemplar que a telemedicina tem que ser regulada e incentivada, porque ela ajuda muito. Eu fiz consultas online com centenas de pessoas, provando que é possível. Porque você vê a pessoa, pode observar se ela apresenta algum sinal de gravidade e, de maneira clara, suave, dizer para ela: “olha, é hora de ir para o hospital.”
Essa experiência que foi feita e executada por nós de maneira quase que compulsória, pela necessidade que foi criada pela pandemia, mostrou que as iniciativas que já haviam começado no Brasil de implementação de modalidades de telemedicina, por exemplo, usando inteligência artificial, sem dúvida nenhuma são possíveis. Agora, isso é um processo também de maturação, porque ela não é uma panaceia. Tem uma frase do Bill Gates que diz “se entra coisa ruim, sai coisa ruim”. Quer dizer, se você não cria, não conceitua alguma coisa viável, boa e acessível, o resultado também não vai ser bom.
Ficou claro para todos que não podemos mais ser apanhados desprevenidos. E o Brasil, a exemplo do que outros países já tinham e provaram durante esse processo, tem que ter mecanismos e estrutura de contingência próprios para isso. Tem que ter recursos humanos preparados para ser acionados rapidamente em uma situação de epidemia. E não só médicos: administradores, estoque de insumos estratégicos… Imagina, não tínhamos máscaras, lembra disso? Não tinha equipamento de proteção individual, não tinha respirador.
Então, tudo isso tem que ter uma contingência preparada, imaginando ou sabendo que vamos ter próximas epidemias. Isso é um aprendizado que incorporamos com essa vivência dos últimos anos e que, nesse processo de reconstrução geral da saúde, devemos levar em conta.
Fonte: Galileu