Erradicar a epidemia da aids até 2030 ainda é possível, afirmou Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas para o HIV/Aids) nessa quinta-feira (13). O obstáculo é a falta de financiamento para exames e tratamentos, que atrasa a luta contra a epidemia mais letal do mundo. Uma pessoa morreu a cada minuto em 2022 em decorrência da doença.

A organização destacou a necessidade de combater as desigualdades, apoiar as comunidades e as organizações da sociedade civil, além de garantir um financiamento adequado e sustentável.

A meta de acabar com a epidemia até 2030 é parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis adotados em 2015 pela ONU. O Unaids articula iniciativas ao redor mundo para chegar a esse objetivo.

O lançamento do novo relatório continua repercutindo no Brasil e no mundo. Em entrevista à Agência Aids, ativistas disseram que estão preocupados com o rumo da epidemia no Brasil.

Segundo o Unaids, o país atingiu 1 das 3 metas globais propostas. Até o momento, 91% dos 990 mil brasileiros vivendo com HIV no país conhecem seu diagnóstico. Desses, 81% estão em tratamento e, entre eles, 95% estão com a carga viral suprimida. A meta do Unaids é de 95% para cada uma das situações.

“O fato de cinco países da África terem chegado a meta 95-95-95 e o Brasil não, assusta. Nós temos melhores condições que estes países africanos de chegar lá”, disse a professora da USP, Vera Paiva.

A especialista se referiu aos países Botsuana, Essuatíni, Ruanda, República Unida da Tanzânia e Zimbábue que já alcançaram as metas de 95-95-95, e pelo menos outros 16 países (incluindo oito na África subsaariana) estão próximos de fazê-lo, de acordo com o documento.

“Houve um atraso na resposta brasileira ao HIV/aids, principalmente do ponto de vista de investimento público, a partir de 2016 com a Emenda Constitucional 95, que limita os recursos para saúde, educação e assistência social no geral. Isso em combinação com um governo que não reconhecia a importância da resposta brasileira ao HIV/aids, que há muitos anos não vêm sendo priorizada”, acrescentou a ativista Alessandra Nilo, da ONG Gestos.

“Um dos principais desafios do país é reforçar as estratégias de ampliação do diagnóstico na população geral, mas principalmente nos grupos mais vulneráveis. Esta é a chave para encontrar as cerca de 99 mil pessoas que vivem com o vírus mas desconhecem sua condição sorológica”, acrescentou Beto de Jesus, da AHF Brasil.

Os ativistas também comentaram os outros dados do relatório. Leia a seguir:

Alessandra Nilo, jornalista e diretora da ONG Gestos, de Pernambuco: “Houve um atraso na resposta brasileira ao HIV/aids, principalmente do ponto de vista de investimento público, a partir de 2016 com a Emenda Constitucional 95, que limita os recursos para saúde, educação e assistência social no geral. Isso em combinação com um governo que não reconhecia a importância da resposta brasileira ao HIV/aids, que há muitos anos não vêm sendo priorizada. Então, o que a gente vê hoje no sentido de o Brasil ainda não ter alcançado as três metas [95-95-95] quando já teria capacidade de ter feito, é realmente resultado do descaso das políticas públicas, principalmente na parte de prevenção. Hoje em dia ninguém mais escuta falar sobre HIV, ninguém mais tem informação de algo que, como mostram os números, continua afetando uma quantidade tão grande de pessoas no país. Agora, eu acredito que no que nós precisamos concentrar em garantir que o governo federal atual cumpra com o seu planejamento, inclua a sociedade civil em todos os processos de decisão, entenda que a sociedade civil é parceira na construção dessas políticas e que realmente se disponha e consiga os meios para aumentar os recursos, principalmente no campo da prevenção combinada. O último ponto que eu acho que seria importante destacar é a necessidade de o Brasil melhorar esses sistemas de monitoramento da sociedade civil nos processos. A gente espera que órgãos consultivos e deliberativos sejam fortalecidos e, inclusive, que a gente consiga ter condições de monitorar alguns dados, porque por exemplo, até esse momento, a gente não consegue fazer o monitoramento do orçamento que vai para a prevenção, esse é ainda um desafio que precisamos enfrentar. Não é por acaso que nós temos este resultado, e espero que nós melhoremos!”

Beto de Jesus, diretor da AHF Brasil: “A primeira leitura sobre o relatório do Unaids em relação às ações que o HIV/aids deixe de ser uma ameaça à saúde pública até 2030 traz um dado preocupante para o Brasil, que atingiu somente uma das três metas globais. Mas é preciso olhar para além dos números e afastar uma constatação meramente pessimista, que pode levar ao imobilismo. Um dos principais desafios do país é reforçar as estratégias de ampliação do diagnóstico na população geral, mas principalmente nos grupos mais vulneráveis. Esta é a chave para encontrar as cerca de 99 mil pessoas que vivem com o vírus mas desconhecem sua condição sorológica e, muito provavelmente, desenvolveram quadros mais graves de saúde. Outro ponto fundamental é, uma vez confirmado o diagnóstico, garantir o acesso ao tratamento e à vinculação dessas pessoas a serviços de saúde que promovam uma abordagem integral da qualidade de vida desses pacientes. São 170 mil pessoas que vivem com HIV, sabem disso, mas não estão tomando os medicamentos. É como se, numa cidade do porte de Recife, 1 em cada 10 pessoas estivesse nessa situação, que tem razões diversas – desde a dificuldade de acesso aos serviços de saúde por razões de vulnerabilidade socioeconômica, desconhecimento sobre a eficácia do tratamento ou até mesmo decisão voluntário e consciente por não se tratar. É realmente uma vergonha para um país que construiu e consolidou suas políticas públicas de enfrentamento do HIV/aids ao longo das últimas quatro décadas, com ampla distribuição de preservativos e outras formas de prevenção, como a PrEP, e onde o tratamento está disponível no SUS há quase 30 anos. Felizmente, é preciso comemorar o fato de 95% das pessoas em tratamento estão com carga viral suprimida, ou seja, indetectável, condição que faz com que elas não transmitam o HIV. É uma prova inconteste da eficácia dos medicamentos antirretrovirais, mas também um chamado ao poder público para garantir a manutenção do tratamento no SUS.”

Vera Paiva, professora da USP e coordenadora do Nepaids (Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids): “O fato de cinco países da África terem chegado a meta 95-95-95 e o Brasil não, assusta. Nós temos melhores condições que estes países africanos de chegar lá, com tudo que a gente tem de experiência, o SUS, menos pobreza que todos estes países… Em uma conta rápida que fiz, são 36 pessoas morrendo por dia pelo HIV/aids, o que é totalmente desnecessário dada as condições que teríamos se as coisas estivessem funcionando. Agora, o que me chama mais atenção é que, mesmo com mudança de governo, os governos locais têm a grande responsabilidade de fazer a prevenção nos termos que ela deve ser feita, a prevenção é o maior lema. O direito a prevenção ficou difícil nas condições do governo anterior, que persegue qualquer questão de sexualidade e gênero, que não garante direitos sexuais e reprodutivos de pessoas jovens e de adolescentes, em particular, que destruiu a educação sobre prevenção nas escolas, entre outros.  Precisamos ter clareza que a mudança de governo no plano federal é importante e fundamental, porque vai se dar mais atenção, em especial, aos grupos mais afetados [pessoas trans, HSHs e profissionais do sexo] que sofrem tanta discriminação, mas a prevenção, de fato, depende da ação política local, de ir para as escolas, garantir no plano local o trabalho da prevenção. O Brasil estava muito dividido, é só a gente ver que quando o governo federal anunciou o fim do financiamento das escolas militares, no mesmo instante o governador de São Paulo, que foi um estudante de escola militar, reinstalou as escolas militares, que certamente não acolheriam a educação preventiva nas escolas. É importante a gente ter clareza da dificuldade que ainda vamos ter. O que eu estou preocupada é a gente falar da integralidade da prevenção, porque já vimos a cena em que se expõe ao HIV e depois ao adoecimento e morte pela aids – caso esteja sem acesso a testagem, ao acolhimento e ao cuidado territorialmente -. Estivemos na mesma cena durante a pandemia de covd-19, expostos ao vírus, a gravidez e a outras doenças infecciosas. Precisamos preparar as escolas e a atenção à saúde básica para reagir a integralidade da prevenção, estando territorialmente ligadas na prevenção. Vimos que a resposta da covid foi territorial, o fato de estarmos saindo do isolamento não evitou a sexualidade e a exposição a aids, então, precisamos pensar de forma integral. Além disso, o crescimento de identidades não binárias [es] entre jovens universitários e do ensino médio, a proporção de meninos e meninas que se identificam como não binários em termos de gênero e inclusive em relação a sexualidade é enorme, e isso não volta mais, por mais que tenha-se evitado falar sobre o assunto, por mais que tenha-se retirado e reprimido a educação sexual nas escolas, a roda não anda pra trás, os dados de pesquisa mostram a quantidade de jovens que não serão mais reprimidos porque a internet existe, em tempos de internet o que você faz? O que a escola pode fazer é diminuir a discriminação, aumentar o acolhimento, e, portanto, diminuir a exposição ao HIV/aids, a Covid-19 e tudo que está nessa cena. Quanto a exposição a outra pandemia que está em curso entre os mais jovens, que é a pandemia de saúde mental, completamente associada a discriminação de gênero e a misoginia e discriminação por orientação sexual. Se a gente não considerar tudo isto, não estamos entendendo que investimento na prevenção local deve ser feito, e eu senti falta disso na fala das pessoas.”

Foto: @paulopereiraox

Dr. Robinson Camargo, da Coordenadoria Municipal de IST/Aids de São Paulo: “O relatório do Unaids traz notícias alvissareiras, indicando a possibilidade real de controlar a epidemia de aids em todo o mundo. Atualmente, existem drogas altamente potentes disponíveis para o tratamento da doença. No entanto, é crucial que haja aumento nas testagem e tratamentos rápidos, a fim de reduzir a carga viral circulante e beneficiar não apenas o indivíduo, mas também a comunidade como um todo. Por outro lado, é importante destacar que os métodos eficazes de prevenção, como o uso de preservativos (internos e externos) e gel lubrificante, não estão amplamente acessíveis. Em vários estados, esses recursos são escassos ou considerados artigos de luxo. Para alcançar um controle efetivo da epidemia, é necessário unir esforços políticos, promover a inclusão e garantir o acesso. Infelizmente, o processo de introdução de novas tecnologias no sistema público de saúde (SUS) tem sido lento. A implementação da profilaxia pré-exposição (PrEP), por exemplo, enfrentou atrasos na sua implantação no país, assim como a disponibilidade da PrEP injetável. Ao analisar os números relacionados ao uso da PrEP no Brasil, é possível constatar a triste realidade de falta de inclusão e acesso restrito. Em alguns estados, menos de 500 pessoas estão utilizando essa forma de profilaxia, e menos de 6% de todas as PrEP disponibilizadas são destinadas às pessoas trans e não vou comentar de pessoas pretas, das periferias e de baixa escolaridade. Aí é um abismo. Além disso, o modelo de saúde do país ainda está centrado nos médicos e amarrado às instituições, o que dificulta o acesso dos grupos mais vulneráveis aos serviços necessários. Embora as instituições afirmem estar aguardando por essas pessoas, infelizmente, elas não conseguem alcançá-las de forma eficiente. Diante desses desafios, é essencial que haja um aumento nos testes, um tratamento imediato e uma eficaz disponibilização dos métodos de prevenção nos locais em que as pessoas estão. Agora, a questão crucial é: será que há vontade política para promover essa mudança? Esperamos que sim.”

Javier Angonoa, diretor de Motirô Bahia: “Mais uma vez o Relatório do Unaids traz, com evidências, a real situação do HIV e aids no mundo e no Brasil. Por uma parte fiquei esperançoso, pois mesmo tendo passado pela pandemia da Covid-19 e suas consequências, as infecções não aumentaram e se pode visualizar um futuro mais favorável. Por outro lado, é urgente fazer investimentos agora, para seguirmos nesse caminho apontado pelo Unaids. No Brasil, preocupado pela retenção ao tratamento (que é a diferença entre o segundo e terceiro percentual das Metas 95-95-95) e as dificuldades de recompor as equipes de saúde. Devemos trabalhar todos juntos, com a liderança do Ministério da Saúde (com seu Departamento de HIV/Aids reestruturado agora) para que isso seja possível. Esse relatório é uma luz que nos aponta para onde devemos orientar as estratégias.”

Harley Henriques, coordenador do Fundo Positivo: “Para nós do Fundo Positivo, e para mim, ativista do campo do HIV/aids que começou a trabalhar esse tema no final dos anos 1980, quando não havia nenhum tratamento antirretroviral disponível, a não ser tratamento as  infecções oportunistas, para um ativista que trabalhava a prevenção apenas com a mensagem “use preservativo, tenha sexo seguro!”, ter agora acesso ao relatório do Unaids, aonde aponta sim uma diminuição expressiva no número de novas infecções por HIV no mundo, que coloca o Brasil como um país que atingiu umas das três metas do Unaids em ter mais de 95% das pessoas vivendo com HIV com carga viral indetectável, nos traz sim uma grande alegria, e mostra que todo o esforço da ciência, dos pesquisadores, da indústria farmacêutica, do governo, e principalmente da sociedade civil e das pessoas vivendo com HIV deu certo. Nós conseguimos sim mudar o quadro de uma epidemia que levava a morte de uma forma tão violenta e tão rápida; mas esse dado também é importante dizer que, ainda em 2022, mesmo com todo esse acesso que temos na prevenção combinada e ao tratamento antirretroviral, ainda existe um óbito a cada minuto em decorrência da aids. Este dado, infelizmente, é alarmante e aponta para algo que sempre nós sociedade civil falávamos: a aids é uma questão estrutural na sociedade, ela perpassa muitos temas, mas especialmente o da desigualdade social. Precisamos falar de acesso, sobre quem está tendo acesso a prevenção combinada, a PEP, a PrEP, a TARV, que ainda são pessoas que estão em determinadas regiões do mundo, e infelizmente as pessoas em maior vulnerabilidade socioeconômica espacial são aquelas que vêm trazer esse dado de uma morte por minuto em 2022. Então, precisamos ter sim ver este relatório em um sentido de vitória, mas saber que ainda temos muito a fazer.”

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Dicas de entrevista

ONG Gestos

Tel.: (81) 3421-7670

AHF Brasil

Tel.: (11) 3352-7760

Fundo Positivo

Tel.: (11) 3106-7147

Nepaids

E-mail: nepaids@org.usp.br

Coordenadoria Municipal de IST/Aids de São Paulo

Tel.: (11) 2027-2000

Redação da Agência de Notícias da Aids