A médica e diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, do Ministério da Saúde do Brasil, dra. Adele Schwartz Benzaken, foi convidada pelo Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), para participar da publicação com ensaios e reflexões de 19 mulheres, líderes notáveis que dedicaram o trabalho de suas vidas à resposta do HIV para crianças. O relatório “Mulheres: no coração da resposta ao HIV em crianças” foi lançado no Hotel Okura, em Amsterdã, na quarta-feira (25), durante a realização da 22ª Conferência Internacional de Aids.

“Fiquei muito honrada com o convite da Unicef. Foi emocionante relembrar toda a essa trajetória de 40 anos luta contra o HIV e de quando comecei, fundando uma ONG para trabalhar prevenção e vulnerabilidade com mulheres e crianças trabalhadoras do sexo nas ruas de Manaus”, relembrou Adele Benzaken.

“Fiquei inspirada pelas histórias e o comprometimento de cada uma e muito comovida pela generosidade ao compartilhar seus pensamentos e experiências com o Unicef É uma notável coleção de brilhantes ensaios de todas vocês”, disse a diretora-executiva do Unicef, Henrietta H. Fore, anfitriã do evento.

O novo relatório que analisa a resposta global ao HIV em crianças, adolescentes e jovens mulheres, a partir da perspectiva de extraordinárias líderes femininas que conduziram a resposta em suas esferas e a transformaram na missão de suas vidas. O relatório conta a emocionante história das notáveis conquistas alcançadas ao longo de 30 anos da epidemia, as dificuldades encontradas e os desafios vencidos, além do que está por vir no contínuo caminho para o fim da aids em crianças e em todas as pessoas. Também são examinadas questões que afetam as crianças em todo o seu ciclo de vida, com novas análises e projeções baseadas nos mais recentes dados estatísticos.

Esperança e saúde para os brasileiros mais vulneráveis

Devo confessar que sempre me considerei uma pessoa um tanto intrépida. Como a filha brasileira, judia e amazonense de pai austríaco e mãe marroquina, aprendi muito cedo a ser versátil – e assim me mantive ao longo dos meus 40 anos de carreira. Durante o comprometimento de uma vida toda com a saúde pública, fui médica, ativista, gestora de saúde e líder de ONG, trabalhando para a prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis (IST), HIV e aids entre mulheres, crianças e outras populações vulneráveis, como trabalhadoras do sexo e povos indígenas.

Desde o começo, fui motivada pela ideia de lutar contra a discriminação entre aqueles que mais a enfrentam. Foi às pessoas vivendo à margem da sociedade que minha atenção sempre se voltou.

Nos anos 1970, quando me tornei médica, eu pensava que trabalhar em um serviço de saúde seria suficiente para ajudar as mulheres da minha comunidade a lidar melhor com seus corpos e sua sexualidade, mas não demorei a descobrir que estava enganada. Um doutorado em saúde pública também se provou insuficiente: eu precisava ir até onde as pessoas estavam, mesmo que isso significasse trabalhar nas ruas.

Então, nos anos 1990 – enquanto coordenava o primeiro departamento estadual de IST, HIV e aids do Amazonas –, fundei uma ONG para ajudar as trabalhadoras do sexo locais, tanto mulheres como crianças. Essa ONG combateu a discriminação e lutou para ensinar a essas trabalhadoras como prevenir as IST, ao tempo em que oferecia às crianças sexualmente exploradas alternativas para a vida nas ruas.

Lidar com as vulnerabilidades sociais e econômicas que muitas vezes levam crianças e adolescentes a enfrentar violência sexual e prostituição é extremamente desafiador. Para mim, a resposta ao HIV em crianças significa usar a educação – não apenas na escola, mas em oficinas que capacitam jovens por meio da educação entre pares nos seus próprios ambientes, por exemplo – para expandir a prevenção e o autocuidado, levando em consideração as especificidades locais e pessoais.

Creio ser possível dizer que tantas mulheres notáveis assumiram a liderança na resposta ao HIV em crianças porque as mulheres são inquestionavelmente engenhosas, sensíveis e criativas em face das adversidades – e isso significa força e energia renovadas na manutenção da resposta à epidemia. A crescente liderança feminina em seus vários e cruciais papéis na sociedade contemporânea certamente leva à melhoria da resposta ao HIV em crianças em todo o mundo: as mulheres são líderes naturais onde quer que estejam.

Em seguida ao meu trabalho com mulheres e crianças trabalhadoras do sexo nas ruas de Manaus, eu passei a coordenar projetos envolvendo outra população vulnerável: os povos indígenas da Amazônia brasileira, onde trabalhamos duro para ajudar comunidades a lutar por sua cidadania e combater a sífilis, o HIV e outras IST, assim como a transmissão vertical dessas doenças. Durante esse período, introduzimos o primeiro teste rápido brasileiro, com resultados drasticamente positivos, ainda que locais. Esse teste rápido provou-se a melhor maneira de evitar que mais crianças nascessem com sífilis congênita.

Anos mais tarde, já como diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde – que é o órgão responsável elo programa nacional de HIV –, estou mais uma vez comprometida com o fim do HIV e das IST entre os jovens e as populações vulneráveis do Brasil.

No Departamento, mediante a cooperação contínua entre o governo e a sociedade civil, temos implementado ações focadas nos jovens, ampliando os esforços para a prevenção do HIV e protegendo os direitos humanos das populações vulneráveis, por meio de capacitação entre pares, campanhas de conscientização e oficinas preparatórias para que os jovens se tornem líderes dentro se suas próprias comunidades.

Tudo isso é parte da abordagem brasileira da Prevenção Combinada, que oferece múltiplas alternativas para prevenção e testagem, priorizando o diagnóstico precoce e fortalecendo a retenção ao tratamento universal e ao cuidado como ferramenta para o tratamento como prevenção.

A resposta da Prevenção Combinada no Brasil também inclui a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) – disponível para adultos selecionados em 11 estados brasileiros desde dezembro de 2017, e em todos os estados a partir de julho de 2018 – e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP). A PEP é oferecida no Brasil desde 1999 para acidentes ocupacionais e violência sexual e, desde 2013, também para as pessoas expostas ao risco do HIV decorrente de sexo consensual, estando agora disponível em 1.304 serviços de saúde em 652 municípios. A dispensação de PEP aumentou de 11 mil unidades em 1999 para mais de 87.000 unidades em 2017.

Uma pesquisa de alcance nacional sobre o uso da PrEP em adolescentes – patrocinada pelo UNITAID – encontra-se em desenvolvimento, e seus resultados serão incorporados ao programa nacional em 2019

Quanto à transmissão vertical, conseguimos interrompê-la ao estabelecer o uso do antirretroviral raltegravir – ao invés do efavirenz, que é muito menos eficiente – no tratamento de gestantes vivendo com HIV, levando-as à carga viral indetectável. Também introduzimos a certificação de municípios brasileiros que eliminaram a transmissão vertical do HIV. Curitiba foi a primeira cidade a alcançar a certificação, e outros municípios estão seguindo o mesmo caminho.

Esses resultados positivos renovam nossa esperança quanto ao futuro da resposta ao HIV em crianças. Em todo o mundo, novas perspectivas estão sendo estabelecidas, mas ainda há muito a fazer. A liderança das mulheres é fundamental para essa resposta.

Tenho orgulho dos progressos alcançados pelo Brasil, e fico feliz em dizer que – como mulher, mãe e profissional dedicada à resposta ao HIV em mulheres, crianças e outros grupos vulneráveis – estou tão animada como há 40 anos para enfrentar esse desafio em meu país e no mundo.

* Adele S. Benzaken é diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, do Ministério da Saúde do Brasil. É consultora da OPAS e membro do Comitê para Validação da Eliminação da Transmissão Vertical do HIV e da Sífilis Congênita na América Latina e Caribe. Trabalhou no Unaids Brasil e chefiou diversas instituições no estado do Amazonas.

Clique aqui e leia a publicação da Unicef (em inglês) completa.