Pacientes transplantados receberam órgãos infectados com HIV no RJ; incidente "sem precedentes" - Jornal Opiniao do Entorno

Recentemente, um erro laboratorial em transplantes de órgãos no Rio de Janeiro trouxe à tona graves consequências para a saúde pública e gerou discussões sobre o impacto emocional nos pacientes e suas famílias. Além da questão técnica, o episódio revelou a necessidade de maior atenção à saúde mental daqueles afetados e o risco de reforçar estigmas em torno do HIV e dos transplantes.

A professora doutora Edna Peters Kahhale, Coordenadora do Laboratório de Estudos Saúde e Sexualidade (LESSEX) da PUC São Paulo, destacou os efeitos devastadores que um transplante mal sucedido pode causar nas pessoas envolvidas. “A pessoa que necessita de um órgão e seus familiares vivem momentos de muita tensão, esperança e desesperança numa fila de transplante. Dependendo da gravidade do seu caso e do tamanho da fila, esses sentimentos podem ficar mais acentuados. É necessário continuar acreditando na possibilidade de voltar a ter uma vida com autonomia e qualidade”, afirma Edna.

O transplante, quando finalmente realizado, traz de volta a esperança e o alívio de uma vida renovada. No entanto, quando ocorre um erro como o recente caso em que um paciente recebeu um órgão comprometido pelo HIV, a reação é devastadora. “É um balde de água fria na cabeça! Agora, além dos limites que já tinha anteriormente ao transplante, terá que associar um acompanhamento para cuidar do HIV para o resto de sua vida”, observa a especialista.

Além do impacto físico, o abalo psicológico é profundo. A ansiedade e a frustração não atingem apenas o paciente, mas também familiares e profissionais de saúde, que se veem diante de uma falha que poderia ter sido evitada. Esse choque emocional exige um olhar atento para a saúde mental dos envolvidos. “Cuidar da saúde mental de todos é super importante para que possam enfrentar mais esse desafio”, ressalta Edna, que também defende um maior controle social sobre as políticas de saúde para evitar falhas desse tipo.

Reforço do estigma e medo coletivo

A psicóloga Elizabete Franco, professora do curso de Obstetrícia e Mestrado em Mudança Social e Participação Política da EACH/USP, faz uma análise preocupante sobre o impacto deste caso no imaginário coletivo. Ela observa que o erro laboratorial, além de colocar em risco a saúde dos pacientes, também prejudica a percepção pública sobre a segurança dos transplantes e sobre o controle do HIV. “Deixa uma imagem de que os transplantes não são seguros, de que podem trazer, junto com a possibilidade de cura, uma possibilidade de adoecimento”, comenta.

Elizabete alerta para o risco de que esse episódio reforce estigmas antigos em relação ao HIV, estigmas que já foram amplamente combatidos com anos de conscientização e avanços médicos. “Acho que reforça estereótipos anteriores de que a aids é uma doença fatal, muito complicada, que não tem controle, coisas assim, que a gente já superou, por exemplo, na transfusão de sangue.”

Ela ainda enfatiza que esse episódio específico deve ser tratado como um caso isolado, sem manchar a imagem da doação de órgãos ou do controle do HIV em geral. “Foi uma questão desse episódio no Rio de Janeiro. Esse crime é muito prejudicial para a visão que a maioria da população, que não tem acesso a tanta informação, possa ficar pensando que é realmente um perigo o HIV e o transplante”, diz.

Falhas de comunicação

Para a psicóloga e sexóloga Regiane Garcia, do Instituto Cultural Barong, houve falhas significativas na forma como a mídia hegemônica tratou o tema, contribuindo para a desinformação e agravando preconceitos, como a sorofobia.”Fiz uma enquete com alguns pacientes e colegas da clínica — desde recepcionistas até a equipe médica — para entender o que sabiam sobre essa situação. A maioria criticou o SUS, sem compreender completamente o que aconteceu”, conta. Segundo ela, muitos souberam que os órgãos transplantados estavam infectados com HIV, mas não entendiam como o processo ocorreu.

“As críticas ao SUS reforçam a percepção equivocada de que a saúde privada é muito superior, livre de corrupção, falcatruas e burocracias”, explica Regiane.

A especialista alerta que a má comunicação não apenas distorce a imagem do SUS, mas também agrava o estigma relacionado ao HIV. “Uma má comunicação só reforça ideias equivocadas sobre o SUS, sua competência e a segurança dos transplantes. Além disso, piora a sorofobia — o preconceito e o estigma em relação ao HIV”, afirma.

Regiane destaca que é essencial esclarecer o processo de transplante e as responsabilidades das clínicas envolvidas, como a que falhou nos testes para o HIV. “As pessoas precisam entender quem são essas empresas parceiras do SUS, como funciona o processo de transplante. É fundamental esclarecer para que as pessoas não acreditem que transplantes são inseguros ou que sempre haverá risco de receber um órgão infectado. Precisamos garantir que a campanha de doação de órgãos continue crescendo e que o estigma relacionado ao HIV não aumente”, reforça a psicóloga.

Educação e conscientização

Regiane compartilhou um exemplo pessoal que ilustra a falta de entendimento sobre a doação de órgãos. “Tenho tatuado na mão o símbolo da doação de órgãos, o lacinho verde. Um dia, uma colega de trabalho perguntou se eu era palmeirense por causa dessa tatuagem. Então, parei para explicar que aquilo era o símbolo da doação de órgãos e que eu era doadora”, conta. “Isso só reforça que precisamos de um trabalho educativo contínuo para que as pessoas entendam melhor esses temas. É um trabalho muito pedagógico e educativo”, disse Regiane.

O valor da vida 

O psicólogo clínico João Alfredo Meirelles reflete sobre a complexidade do imaginário humano e sua relação com a vida e a morte. Para ele, o imaginário, assim como o cérebro humano, é um universo vasto, formado tanto por razões conhecidas quanto por aquelas que permanecem no campo do desconhecido. Dentro desse sistema infinito de possibilidades, o ser humano busca, ao longo da evolução, um ponto de equilíbrio entre emoções, pensamentos e ações, para evitar o colapso em sua existência individual, social e cultural.

Segundo Meirelles, embora saibamos que a morte é inevitável, nascemos para viver e constantemente nos esforçamos para preservar essa vida. Ele pontua que os esforços em prol da saúde pública, conquistados nas últimas quatro décadas, colocaram o Brasil entre os países com um dos melhores sistemas de saúde do mundo.

“Quando o sistema de saúde é colocado em xeque, ele impacta profundamente nosso imaginário coletivo, gerando dúvidas, temores e descrédito em relação ao sistema e às pessoas que trabalham para garantir a vida”, observa Meirelles. Para ele, esse tipo de crise, quando alimentada por políticas “necrófitas” — aquelas que não priorizam a vida, mas o lucro —, transforma todos em vítimas. “Não apenas aqueles que contraíram o vírus são afetados, mas todo o sistema de saúde e o imaginário coletivo da sociedade”, acrescenta.

A reflexão do psicólogo sugere uma pergunta importante: a quem realmente serve a saúde pública? “Aos que querem viver, ou àqueles que veem o ser humano como mercadoria e o lucro como prioridade?”, questiona Meirelles. A crise em Nova Iguaçu, assim como outras situações críticas no sistema de saúde, reforçam o abismo entre a vida como um valor essencial e as políticas que colocam o lucro acima de tudo.

Apoio psicológico

O apoio psicológico, segundo os especialistas, torna-se essencial para que pacientes e seus familiares consigam lidar com o trauma de ter enfrentado a fila de transplante, de ter lidado com a esperança de uma vida nova e, depois, de ter que enfrentar mais um desafio.

O erro no transplante de órgãos comprometidos pelo HIV destaca a necessidade de reforçar a fiscalização e os protocolos de segurança em doações de órgãos, mas também abre um importante debate sobre o cuidado emocional com os pacientes. Ao mesmo tempo, revela o quanto ainda há a ser feito no combate ao estigma em torno do HIV e como episódios isolados podem minar anos de avanços.

Para Edna Peters Kahhale, aumentar o controle social sobre as políticas de saúde é fundamental para prevenir que falhas desse tipo continuem ocorrendo. Já Elizabete Franco reforça que a conscientização sobre a segurança dos transplantes e o controle do HIV devem ser mantidos em foco, para evitar o ressurgimento de estigmas prejudiciais.

O apoio à saúde mental, o combate ao estigma e a transparência nas políticas de saúde são, portanto, elementos centrais para lidar com as consequências dessa falha e garantir que os pacientes afetados possam superar mais esse obstáculo em suas vidas.

Dicas de entrevista

Edna Kahhale

E-mail: ednakahhale@pucsp.br

Elizabete Franco

E-mail: betefranco@usp.br

Regiane Garcia

Instagram: @regiane8806

João Alfredo Meirelles

Instagram: @joaoalfredobonidemeirelles