Em meio às celebrações do Novembro Azul e do Dia da Consciência Negra, há alguns dados de saúde envolvendo a população negra que passam batido e revelam um enorme abismo no acesso a políticas públicas.
Cerca de 56% dos brasileiros se declaram negros, mas estar em maior número não significa ter mais acesso a itens básicos como prevenção de saúde, educação e cultura que garantiram condições mais igualitárias na sociedade.
De acordo com o dr. Fleury Johnson, médico pela UFRJ e pesquisador em saúde da população negra, o adoecimento dessa população está relacionado a três pilares: escravatura, racismo institucional e estrutural.
“Como os negros fazem parte da população mais pobre do Brasil, esses pilares limitam suas opções de lazer, cultura e melhores condições de vida. Conseguem se estabelecer em áreas periféricas, de difícil acesso, onde a educação não chega, a cultura não chega e a saúde também”, afirmou.
O médico acrescenta que o racismo estrutural é aquele preconceito enraizado que fortalece um sistema que hierarquiza relações políticas, culturais, econômicas e religiosas. Para refrescar a memória, basta lembrar que tivemos mais de 300 anos de escravidão no país e as marcas dessa exploração completam exatos 133 anos este ano. Em termos históricos, isso é muito pouco tempo, por isso os resquícios dessa época ainda são tão fortes e presentes.
Com essa limitação sócioeconômica, a população que reside nesses centros acaba consumindo alimentos calóricos, mas pouco nutritivos, como salsichas, refrigerantes, bolachas, macarrão instantâneo e iogurtes açucarados que acabam sendo um prato cheio para o diabetes, pressão alta e colesterol elevado.
Só para ter uma ideia, o diabetes tipo 2, segundo a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, atinge com mais frequência os homens negros (9% a mais que os homens brancos) e as mulheres negras (em torno de 50% a mais do que as mulheres brancas). A pressão alta tende a ser mais comum em negros, de ambos os sexos.
Mas é na infância que há um risco maior de adoecimento e morte. Quando se fala em saúde das crianças negras, automaticamente se pensa em anemia falciforme, mas o risco de uma criança negra morrer antes dos 5 anos por causas infecciosas e parasitárias (giardíase, tuberculose) é 60% maior do que o de uma criança branca. Tudo isso poderia ser evitado se houvesse melhores condições de saneamento básico, por exemplo.
O risco de desnutrição de uma criança branca é quase inexistente, contra 90% das crianças negras.
“Infelizmente, isso não melhora. Se essa criança consegue ultrapassar as dificuldades e chegar na adolescência, há risco de mortes violentas, já que as crianças negras estão longe das escolas, além do risco de uma gravidez não planejada ou abortos sépticos.”
Racismo institucional e a dificuldade de acesso a exames preventivos
Na idade adulta, as doenças crônicas, como diabetes e pressão alta, se sobressaem nessa população, mas acabam demorando para serem diagnosticadas, reflexo, dessa vez, do racismo institucional.
“Por conta da falta de informação básica em saúde, doenças que têm tratamento e são preveníveis acabam sendo causa de muitas mortes evitáveis. Por conta dessa demora no diagnóstico, há um risco maior de complicações, como retinopatia e nefropatia diabética, mais prevalente na população negra”, explica o médico.
Por exemplo, muita gente não sabe, mas o diabetes é tratado no SUS, nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), a porta de entrada do sistema.
Em tese, além do atendimento regular para monitorização da glicemia, o paciente também deveria ser informado frequentemente sobre a doença e suas complicações.
Vale lembrar que o racismo institucional nem sempre é tão evidente quanto o racismo estrutural, mas afeta diretamente o tratamento clínico do indivíduo por várias razões.
“Há uma limitação do acesso básico à informação de saúde, principalmente por má vontade dos especialistas. Cerca de 70% dos pacientes negros, quando chegam a algum centro de saúde, não são bem atendidos, nem orientados. Médicos tratam com indiferença ou simplesmente não examinam o paciente, e pequenas negligências vão se acumulando. Por exemplo, mulheres negras são maltratadas durante o parto, porque recebem menos anestesia. Isso vem de muitos anos, porque se associa até hoje que mulheres negras são mais resistentes a dor.”
O racismo institucional afeta diretamente a saúde dos homens negros também, principalmente quando o assunto é câncer de próstata. O médico oncologista André Deeke Sasse, membro da Asco (Sociedade Americana de Oncologia Clínica), escreveu recentemente um artigo sobre câncer de próstata na população negra cujo resultado mostra que o risco de um homem negro morrer vítima do câncer de próstata é o dobro do que o de um homem branco.
“Dados mais recentes sugerem que homens negros aparentemente não são portadores de doenças biologicamente e intrinsecamente mais agressivas. No entanto, fazem menos exames de rastreamento como PSA, e mais frequentemente fazem diagnósticos mais tardios, em estadios mais avançados. Também têm menos acesso a especialistas após o diagnóstico, são mais dependentes do SUS e estão mais distantes de novas tecnologias”, descreve o médico.
Apesar de o Ministério da Saúde ter ações institucionalizadas para diminuir as desigualdades em âmbito raciais, como a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra em 2010, que ajudou, entre outras coisas, a criar cursos de capacitação para gestores e profissionais da saúde, programas específicos para anemia falciforme e a implementar o quesito raça/cor/etnia em sistemas de informação do SUS, muitos profissionais da saúde sequer ouviram falar dessas diretrizes, quanto menos colocar em prática.
Básico também é difícil
Dr. Fleury chama atenção ainda para o discurso médico sobre hábitos saudáveis que se distancia da realidade da população negra e periférica.
“Quando a gente fala de hábitos alimentares saudáveis, é preciso primeiro entender o que aquela pessoa come. Entender a rotina e aí traçar uma estratégia dentro dessa possibilidade. O próprio discurso de hábitos saudáveis ainda é muito desigual. A mesma coisa para atividade física. Como a pessoa vai se exercitar se trabalha em dois empregos e chega tarde da noite? Não dá para falar: olha desça um ponto antes aí você caminha, porque muitos residem em áreas com alto índice de violência. Então a gente vai conversando, orientando, sugerindo caminhar dentro de casa ou fazer alongamentos diários. Como médicos, precisamos aprender a trabalhar com essa população, ouvir mais e traçar alternativas”, conclui Fleury.
* Juliana Conte é jornalista, repórter do Portal Drauzio Varella desde 2012. Interessa-se por questões relacionadas a manejo de dores, atividade física e alimentação saudável.
Fonte: Portal Drauzio Varella