Ações baseadas na epidemiologia contribuem para o ‘soft power’ do país ao reduzir a carga de doenças
O poder de uma nação combina domínio econômico e militar com o soft power, termo para definir outras ações que podem cooptar os demais países, como as ações de saúde pública baseadas na epidemiologia.
Após a Segunda Guerra Mundial, as principais causas de morte já eram infarto do miocárdio e câncer. Para descobrir os motivos, estudos em longo prazo — as coortes — foram iniciados. Um, em 1948, com 6 mil moradores de Framingham, nos Estados Unidos. Em 12 anos, revelou que as maiores causas do infarto do miocárdio eram colesterol alto, hipertensão e tabagismo. Outro estudo, em 1951, aplicou a 40 mil médicos britânicos questionário sobre o hábito de fumar e mostrou que a morte por câncer de pulmão ocorria 13 vezes mais em fumantes. Essas duas coortes continuaram por mais de 50 anos, até a morte dos últimos participantes.
O Brasil teve sua primeira coorte em 1982. Nesse ano, baseado no fato de as taxas de mortalidade na infância serem das maiores do mundo, Cesar Victora, da Universidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, começou a primeira de outras três coortes de nascimento (1993, 2004 e 2015), que incluíram todas as crianças nascidas na cidade nesses anos. As coortes de Pelotas influenciaram a teoria dos “mil dias” (da concepção até o segundo aniversário). Com seus resultados, influem até hoje nas políticas públicas em todo o mundo. As coortes de Pelotas são um marco para a epidemiologia brasileira, mas faltava compreender, em nossa sociedade, os fatores de risco da principal causa de mortalidade: as doenças cardiovasculares.
Em 2004, para suprir esse lapso do conhecimento epidemiológico, pesquisadores de outras universidades brasileiras e eu propusemos o acompanhamento em longo prazo de funcionários de universidades entre 35 e 74 anos. Com apoio imediato do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, organizaram-se seis centros de pesquisas (em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Vitória), equipados para o exame completo desses voluntários. Em agosto de 2008, iniciou-se o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil), que até 2010 recrutou 15.105 participantes, seguidos desde então, com informação anual sobre o estado de saúde, além de três outros exames presenciais realizados com intervalo de quatro anos. Todos os participantes permitiram que amostras de sangue fossem congeladas para análises futuras e para o sequenciamento genético, além de realizarem exames tomográficos cardíacos periódicos.
Desde então, o ELSA-Brasil tem trazido inúmeras contribuições à ciência, tendo originado quase 600 artigos e mais de uma centena de teses acadêmicas. No momento, poderá permitir ao país criar novas tecnologias para atender às doenças que aumentam em número e custo para toda a sociedade. Seja na atenção primária à saúde, seja na incorporação de tecnologias disruptivas.
O ELSA-Brasil pode contribuir com muitos dados para a política de Estratégia de Saúde Cardiovascular na Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, em especial com o escore de risco da população brasileira.
Na outra ponta, com o Ministério da Saúde, será possível identificar os participantes que sofreram redução de cognição, aferida por questionário padronizado. Isso poderá ser feito com exames de imagem cerebral de alta definição, com a possibilidade de associá-los aos dados de sequenciamento genômico do ELSA-Brasil.
Esse é o momento em que o ELSA-Brasil mostra seus dados, de pesquisa financiada pelos cidadãos, cujo retorno — seja em atendimento na atenção primária ou em novos exames e medicamentos para demência — dependerá do apoio de toda a sociedade, dentro e fora do próprio Ministério da Saúde.
O ELSA-Brasil e as coortes de Pelotas representam a contribuição da epidemiologia para o soft power do Brasil ao reduzir a carga de doenças no país e no mundo.
*Paulo Lotufo, médico, é professor titular da Faculdade de Medicina, diretor do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica e superintendente de Saúde da USP
Fonte: O Globo