Filho do senhor Washington e da dona Vivalda, estivador e auxiliar de enfermagem, respectivamente, o infectologista Maiky Prata cresceu na periferia de Santos. Sua infância foi marcada pela simplicidade, superando desde cedo os desafios da vida com determinação, apostando sempre no valor da educação. Embora fosse desafiador, ele persistiu, inclusive confrontando questões enfrentadas por crianças LGBTs em um contexto de preconceito e discriminação. “Desde sempre percebi que não correspondia às expectativas sociais para um garoto. Sempre fui afeminado e isso gerava críticas, até mesmo em casa”, revela dr. Maiky, em entrevista à Agência Aids. Conheça a seguir a inspiradora trajetória de vida deste médico.

Aos 12 anos, o médico viu seus pais se separarem, e sua irmã mais velha, Kyzzi Prata, assumiu um papel fundamental em sua criação, já que seus pais precisavam se ausentar para trabalhar. Na escola e em casa, ele enfrentava constantes confrontos devido às suas diferenças. Emocionado, o médico relembra que também enfrentou desafios na igreja: “A igreja não é acolhedora para pessoas LGBTs. Não consegui permanecer lá porque eu era criticado em nome da fé.”

“Em casa, era comum ouvir comentários como ‘menino, descruza essa perna’ ou ‘por que você anda desse jeito? Anda mais firme.’ As críticas ao meu jeito de andar e de falar eram frequentes. Desde a primeira série na escola, eu enfrentava situações similares. As outras crianças notavam minha diferença e me perguntavam se eu era menina e por qual motivo minha voz era tão fina.”

Ao refletir sobre o passado, o médico recordou uma situação em que toda a turma fez uma piada homofóbica, e em vez de ajudá-lo, a professora sugeriu que ele simplesmente ignorasse o preconceito. Maiky considera essa atitude extremamente insensível, pois o deixou em uma posição de vulnerabilidade, sendo ela a autoridade naquele ambiente.

Despreparo social

Para ele, tanto a família quanto a escola, a igreja e a sociedade em geral não estavam preparadas para acolher pessoas LGBTs, especialmente as crianças.

“Eu vim de uma família humilde, ninguém sabia muito bem como lidar com isso. Na escola e em casa, faltava preparo. Acredito que os pais não estão prontos para lidar com filhos LGBTs. Isso acabou gerando muito sofrimento, um sentimento profundo de inadequação. Porque, sinceramente, eu não era compreendido na escola nem em casa. Sempre foi algo muito complexo para mim”, relembra Maiky.

“É por isso que hoje eu enfatizo a importância de termos modelos, representatividade, porque as crianças LGBTs não se sentem representadas. Elas não têm alguém próximo, como um primo, com quem possam compartilhar histórias semelhantes. Às vezes, pode haver uma criança assim, mas, em geral, você se sente muito isolado com seus dilemas e conflitos… Acho que vivi esse isolamento até a adolescência, encontrando algum acolhimento na igreja. Minha família frequentava a igreja adventista, e eu gostava de participar dos cultos. Lembro-me disso porque ali havia uma sensação de pertencimento coletivo, onde eu não era tão destacado individualmente e, talvez devido à religião, as pessoas não me julgavam explicitamente. No entanto, ainda havia um grande sentimento de inadequação, e tudo isso permeava outras questões, incluindo étnicas e culturais.”

Nova era

Com o passar dos anos, ele foi superando os desafios. Com sua família, construiu uma rede de apoio baseada em muito amor. Dr. Maiky acredita que geralmente pais e mães de crianças LGBTs reproduzem preconceitos e comportamentos por receio de verem seus filhos enfrentando os riscos que o mundo impõe.

O médico enfatiza que, apesar de todas as adversidades, nunca desistiu de desafiar as estatísticas e escapar dos papéis historicamente atribuídos a pessoas como ele, de origem pobre e periférica. Dr. Maiky dedicou-se incansavelmente para alcançar não apenas seus próprios sonhos, mas também os de sua família.

Da enfermagem a medicina

Hoje, é um infectologista respeitado. Ele trabalha no Centro de Referência e Treinamento em HIV/Aids de São Pauloe no Ambulatório de Saúde Integral para a População de Travestis e Transexuais, em Diadema. Se dedica integralmente ao combate e prevenção das ISTs/aids.

Seu primeiro contato com a saúde foi via enfermagem. Seguindo os passos da mãe, se formou na Escola de Enfermagem da USP, onde conquistou uma bolsa integral a partir da nota no Enem. Foi lá que se envolveu profundamente com a temática do HIV/aids.

Depois disso, resolveu lutar pelo sonho de ser médico. Nos primeiros anos de seu curso, dividia o tempo entre estudar e trabalhar para se sustentar. Ele lembra que o trabalho inicial como enfermeiro cobria suas despesas básicas de alimentação, enquanto as demais, incluindo mensalidades, livros e gastos pessoais, foram suportadas com a ajuda financeira crucial de sua mãe, que enfrentava desafios significativos para mantê-lo.

Consciente das dificuldades financeiras, o médico optou por ingressar no FIES durante o governo Lula. O programa de financiamento estudantil flexível, obtendo assim uma bolsa que foi fundamental para sua trajetória acadêmica e profissional. Ele se orgulha ao reconhecer o impacto positivo que essa decisão teve em sua vida.

“Durante minha graduação em enfermagem, iniciei meus estudos em saúde coletiva, questões de gênero, entre outros temas, e foi nesse período que comecei a me envolver com o campo do HIV/aids. Ingressei na faculdade aos 18 anos e logo me juntei à Liga de IST, anteriormente conhecida como Liga de Sífilis e DSTs, da Faculdade de Medicina. Essa liga funciona como um ambulatório onde os alunos discutem casos clínicos”, compartilha Maiky, que posteriormente ingressou no curso de medicina já com uma paixão desenvolvida pela infectologia.

Como profissional de saúde, além de cuidar diariamente de pessoas LGBT+ e indivíduos vivendo com HIV/aids, luta pela promoção de políticas públicas que asseguram direitos e cuidados adequados para essa população. Ele considera fundamental capacitar profissionais sensíveis aos direitos humanos em todas as áreas, como saúde, educação e segurança pública.

Questionado sobre a principal mensagem neste mês do OrgulhoLGBTQIA+, especialmente durante esta semana que marca o Dia Internacional do Orgulho LGBT+, dr. Maiky deseja que todos tenham garantido o direito de ser quem são e amar sem restrições. Ele afirma: “Nunca mais nos digam quem devemos ser ou como devemos viver!”

“Este é um momento para afirmar que nossos corpos existem e são significativos. Devemos lembrar que também contribuímos, trabalhamos, temos família, podemos amar, criar, e tudo isso requer apenas que os outros nos permitam existir. Não devem nos reprimir. Este dia é um grito de que estamos aqui e não seremos apagados. O orgulho serve para nos lembrar de nossa história e jornada. Não devemos nos sentir diminuídos; é um momento de acolhimento para lembrar que não estamos sozinhos. Devemos nos unir e reconhecer que fomos reprimidos e ignorados, mas agora resistimos, apesar de todas as tentativas de nos apagar”, concluiu.

Kéren Morais(keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Dr. Maiky Prata

@maiky_prata