Documentos exigidos pelo TJRJ incluem identidade e CPF do representante legal e do menor, certidão de nascimento desse e comprovante de residência da família

Lucas de Souza Maciel conquistou, junto à mãe Nilce Maria, a retificação de seu nome e gênero no TJRJ

Lucas estava de bermuda, camiseta e corta-vento oscilantes entre o cinza e o preto. Os cachinhos, muito bem definidos, pendiam sobre os olhos, quase como se fosse proposital escondê-los. Deu um “oi” tímido, entre os dentes. A mãe Nilce, destoante, usava uma blusa rosa choque, estampada com o nome de um dos blocos de carnaval que participa. O olhar era atento e a fala, enérgica. A conversa entre eles recuperava o dia em que o menino comunicou a preferência de ser tratado no masculino e pelo nome atual. As risadas apareceram junto às divergências de memória e geracionais: mãe e filho têm, respectivamente, 60 e 16 anos.

Em comum, os dois pontuaram que a nova identificação do adolescente aconteceu, naturalmente, em 2021, após uma conversa de acerte. À época, Nilce já havia percebido que, com os amigos, Lucas já era Lucas. No entanto, ela esperava ser avisada oficialmente pelo filho sobre as preferências. Certo dia, sem saber da expectativa da mãe, o garoto a questionou, um pouco irritado, porque ela ainda o chamava pelo nome de registro e pelos pronomes femininos. Após a explicação dela, os dois se resolveram e regularizaram os novos termos.

Naquele mesmo ano, Nilce passou a se certificar dos direitos do filho. Entrou em grupos de diversidade, inscreveu Lucas em outros e cuidou para que o adolescente se sentisse à vontade em compartilhar com ela os desafios da idade e da decisão. A mais recente conquista deles foi a retificação do nome e do gênero do menino, processo feito em um mutirão da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso no Rio de Janeiro, em 25 de outubro. O feito é um dos temas a ser celebrado, neste domingo, na 29ª Parada do Orgulho LGBT+, em Copacabana.

Lucas não foi o único beneficiado com as alterações no documento. Naquele mesmo dia, 18 crianças e adolescentes de diferentes regiões do país conquistaram a requalificação. Ao todo, cerca de 350 pessoas menores de 18 anos já foram retificadas no Rio desde 2021. O estado, segundo ONG, é um dos mais abertos ao acolhimento jurídico desse público.

— Apesar do meu nome social ser respeitado pela maioria das pessoas, é ótimo saber que agora ele vai estar na minha certidão de nascimento e em outros documentos. Eu não vou mais precisar me explicar para as pessoas: É Lucas e pronto — disse o adolescente, que ainda tem o nome de nascimento registrado no Bilhete Único Escolar, por exemplo.

Lucas de Souza Maciel conquistou, junto à mãe Nilce Maria, a retificação de seu nome e gênero no TJRJ — Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

Os documentos exigidos pelo Tribunal de Justiça do Rio incluem identidade e CPF do representante legal e do menor, certidão de nascimento desse e comprovante de residência da família. Além disso, há exigência de apresentação de um relatório de saúde produzido por uma equipe ou pelo profissional que acompanha a criança ou adolescente em transição.

— A gente chegou em grupo, todo mundo com os documentos muito bem organizados. Fizemos camisetas, bandeiras LGBTs, teve lanche, biscoitinho. Foi um dia muito lindo. Eu sempre comentei com o Lucas que ia ser um processo, que as mudanças, mesmo em casa, não seriam imediatas, alguns deslizes iriam acontecer eventualmente, mas eu sempre estive engajada em vê-lo feliz.

Lucas de Souza Maciel conquistou, junto à mãe Nilce Maria, a retificação de seu nome e gênero no TJRJ — Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

ONG luta por direitos

O acesso à retificação no Rio de Janeiro não é regra no restante do país. Como não há uma lei que resguarde os direitos da população LGBT+, os estados, com base em decisões do Supremo Tribunal Federal, decidem como lidar com as demandas. Aqui na capital, os mutirões foram motivados pela ONG Minha Criança Trans, fundada, em 2022, por Thamirys Nunes. A filha dela foi a primeira a ter o direito à mudança de nome e de gênero garantido na cidade.

— A gente ainda morava no Paraná. Eu lembro de ter visto uma matéria sobre a retificação de adultos trans no Rio e pensei: “se fazem em adultos, também podem fazer em crianças”. Comprei passagem para nós duas, organizei todos os documentos, e fui em busca do direito da minha filha.

A retificação aconteceu na Justiça Itinerante de Maré/Manguinhos, próximo à Fiocruz. Após receber os novos documentos da menina, então com 6 anos, Thamirys aproveitou para conversar com o juiz que a atendeu. Na ocasião, contou sobre a tristeza da filha frente às limitações sociais que a exigiam ser e agir como um menino. Reforçou a falta de acesso à informação e a vulnerabilidade de famílias com crianças transgênero. Como resposta, recebeu do magistrado o incentivo para a criação da ONG.

Atualmente, junto a outras mães de crianças e adolescentes trans, Thamirys faz um trabalho informativo e de acolhimento, assim como cobra, das autoridades, mudanças legislativas. Os mutirões do Rio, por exemplo, aconteceram após diversas reuniões com defensores públicos e juízes. O primeiro foi em julho deste ano, quando 106 menores foram requalificados.

— Nosso trabalho hoje é garantir que eles tenham acesso à retificação de forma digna. Buscamos diálogo com outros estados, mas o Rio foi o que melhor nos recebeu. Primeiro, provocamos a Defensoria Pública com o assunto e, depois, o Tribunal de Justiça foi acionado. Levou cerca de um ano para os mutirões começarem.

Juíza titular da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, Lysia Mesquita reforça que a troca de nome e gênero depende, única e exclusivamente, da autodeclaração. Além disso, esclarece que a maioria dos pedidos de retificação é para crianças a partir dos 5 ou 6 anos.

— Para adultos, a retificação pode ser feita nos cartórios de registro de nascimento. Já para menores de idade o processo acontece nas Varas de Infância, na companhia de um responsável legal. Nesses casos, é exigido um relatório médico como forma de comprovação de que a manifestação da criança (ou adolescente) é livre. Não se trata de laudo médico ou diagnóstico, porque a transgeneridade não é doença.

Bento Rezende, psicólogo e pesquisador, aponta que a retificação é uma ferramenta necessária para proteger pessoas trans:

— Esse processo ajuda a viver uma infância e uma adolescência menos sufocante e violenta. Reduz muito a ansiedade, o estresse causado pela exposição do nome de registro e permite uma vivência mais alinhada com o que faz sentido, naquele momento, para a criança ou o adolescente. É uma forma de proteção a algumas violências do dia a dia.

Acolhimento é fundamental
Theo Andrade, de 11 anos, também participou do mutirão de outubro. Acompanhado da mãe Camila, ele viajou de Pernambuco, onde mora, até o Rio só para fazer a retificação dos documentos. Diferente de Lucas, o menino não tem o nome social respeitado na pequena cidade litorânea onde nasceu. Aliás, nada no processo de transição é respeitado por lá. Os casos de violência são tão frequentes, que a família planeja mudar para outro município no próximo ano.

— Mesmo assim, meu filho diz ser a criança mais feliz do mundo. Ele é um gato! É educado, carinhoso, amoroso. O dia da retificação foi histórico, representou tanta coisa. Nossa cidade é muito conservadora, não conhecemos outras famílias como a nossa e o Theo está vulnerável a diversas formas de preconceito. Os documentos novos são um recomeço para a gente — comemora Camila, que é mãe de três meninos.

Segundo ela, Theo começou a demonstrar desconforto com o gênero aos 3 anos, quando foi convidado a ser daminha de um casamento. Ao colocar o vestido, chorou copiosamente, recusando-se a entrar na igreja. Dois anos depois, Camila encontrou pedaços de embalagens de brinquedos dos outros filhos escondidos em gavetas de Theo. Eram imagens de carrinhos, bonecos, peões e bolas, objetos condicionados aos meninos. Os dois tiveram uma conversa difícil, que terminou com ele afirmando que preferia morrer a ser uma menina. A situação desesperou Camila, que, a partir de buscas na internet, encontrou a ONG de Thamirys.

— Eu coloquei no Google: “minha filha quer ser menino” e descobri que existiam outras crianças como o Theo. Encontrei o site Minha Criança Trans, e entrei em contato com a Thamirys no mesmo dia. A conversa me ajudou a entender melhor que não tinha a ver com o meu orgulho, felicidade ou expectativas, tinha a ver com a vida do Theo. Eu não amo meu filho por causa do gênero, porque ele é educado ou tira notas boas, eu o amo porque ele é meu filho.

Diferente de Camila, muitos pais acabam negligenciando os incômodos dos filhos por medo, por invalidarem a autonomia deles ou por acreditarem se tratar de uma fase. Para Sofia Favaro, psicóloga e ativista, é fundamental que as crianças ou adolescentes sejam vistos quanto seres plurais, desassociados dos padrões:

— O que crianças trans revelam é que há um limite nas projeções dos pais para elas. Muitos se perguntam: “como pode uma criança de 4 anos saber tanto sobre si mesma?”, quando, na verdade, a pergunta deveria ser “masculino e feminino dão conta de todas as crianças?”. Parece que não. Quando uma delas diz que é trans, não está dizendo que resolveu tudo na vida, e sim que não corresponde ao roteiro social esperado pelo mundo adulto. Outros questionam: “e se a criança se arrepender?”, “e se for apenas uma fase?”. A vida é feita de muitas fases, e estar perto, presente, é desafiador. Filhos, independentemente do gênero ou da sexualidade, são muitas versões ao longo da vida.