Estudo recente publicado na revista Nature abre caminho para o desenvolvimento de toda uma nova classe de antibióticos, um novo passo na corrida entre a ciência e as bactérias resistentes.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica a resistência antimicrobiana, ou seja, a capacidade de bactérias de escapar de antibióticos conhecidos, como uma das mais graves ameaças a saúde publica global. Bactérias multirresistentes, capazes de escapar de vários antibióticos, são cada vez mais comuns em ambientes hospitalares. Análise publicada na revista Lancet mostrou que, em 204 países avaliados durante o ano de 2019, bactérias multirresistentes foram diretamente responsáveis pela morte de 1,27 milhão de pessoas, e indiretamente contribuíram para a morte de 4,95 milhões. Para comparação, a estimativa de mortes globais por HIV/AIDS foi de 860 mil, e de malária, 640 mil, no mesmo ano.

O uso indiscriminado de antibióticos, erros e imprecisão nas receitas médicas, o uso exagerado em criação animal e a falta de diagnóstico adequado e rápido para doenças bacterianas aceleram o ritmo do surgimento de bactérias resistentes e sua proliferação. Há um tipo de bactéria, as chamadas gram negativas, que tem uma proteção natural contra diversos antibióticos: têm duas membranas, uma interna e uma externa, separadas por um espaço chamado periplasma. Essa cerca dupla dificulta a penetração de várias moléculas, inclusive antibióticos.

O trabalho de agora na Nature descreve uma molécula que se mostrou promissora contra a bactéria Acinetobacter baumannii resistente a carbapenem (CRAB). Acinetobacter baumannii é uma bactéria gram negativa oportunista, que foi bastante observada durante a pandemia de Covid-19. A taxa de mortalidade de pessoas infectadas é de 40%-60%, nem tanto pela agressividade da bactéria, mas pela dificuldade de tratamento, justamente por causa da resistência a quase todos os antibióticos conhecidos. Isso levou a OMS a classificá-la como patógeno de prioridade máxima.

A nova molécula, a zosurabalpina, age na cerca dupla. Mais especificamente, impede a síntese de um componente essencial da membrana externa desta bactéria, o lipopolissacarídeo (LPS). Isso apresenta dois problemas para o microrganismo: o acúmulo de LPS dentro da célula, que acaba se tornando tóxico para o microrganismo, e a impossibilidade de montar corretamente a membrana externa, deixando a bactéria mais vulnerável. O novo fármaco foi testado com sucesso em culturas de células e camundongos, reduzindo significativamente o número de bactérias nos animais, assim como o número de mortes pela infecção. Estudos clínicos em humanos já começaram.

Os desafios até que a nova molécula se torne um medicamento são muitos. Poucos fármacos de sucesso em animais repetem esse sucesso em humanos. Além disso, a molécula funciona especificamente para Acinetobacter, e não para outras gram negativas. Isso traz a vantagem de não prejudicar as demais bactérias do corpo humano, que são em sua maioria benéficas. E a desvantagem de exigir um diagnóstico exato antes de se utilizar o medicamento, já que ele é inútil contra qualquer outro agente infeccioso.

Mas talvez a maior contribuição deste trabalho seja abrir caminhos. Atacar os transportadores e proteínas que atuam na dupla camada de proteção das bactérias gram negativas, entre a membrana interna e a externa, pode ser uma excelente estratégia de pesquisa para novos antibióticos voltados a outras espécies bacterianas. Mirar nestes alvos torna desnecessário encontrar moléculas capazes de cruzar estas barreiras, que são estruturas únicas de bactérias: células humanas não serão atingidas por “fogo amigo”. Faz 50 anos que não temos novos antibióticos para bactérias gram negativas. Este pode ser um bom começo.

Fonte: O Globo