Segundo o belga Daniel De Backer, esta forma de atendimento já é uma realidade contra o câncer e doenças autoimunes, e está se consolidando para atingir outras áreas

Há alguns anos, a medicina evolui para um cuidado cada vez mais individualizado do paciente. O grande carro-chefe dessa transformação é a medicina de precisão, que analisa características individuais e biomarcadores para oferecer um tratamento mais assertivo aos pacientes.

Em entrevista ao Globo, por Zoom, o médico belga Daniel De Backer, chefe dos departamentos de cuidados intensivos dos Hospitais CHIREC (Bruxelas e Braine l’Alleud-Waterloo) e professor da Universidade Livre de Bruxelas, explica o que é a medicina personalizada e como essa forma de atendimento está se consolidando.

Em que casos um tratamento pode ser individualizado?

Um mesmo medicamento não tem o mesmo efeito para todo mundo. Antes, considerávamos que todas as pessoas eram mais ou menos iguais e que uma mesma doença, com a mesma gravidade, teria características iguais, em pessoas diferentes. No entanto, descobrimos que os caminhos que levam determinado indivíduo a chegar em um alto nível de gravidade de uma doença podem ser diferentes dos que levam outra pessoa ao mesmo nível de gravidade. Então, às vezes, a forma como tratamos esse paciente precisa ser refinada. Com a medicina baseada em evidências, que é a melhor opção que temos no momento, nós ainda tentamos randomizar os pacientes com base em características gerais que eles apresentam. Um bom exemplo disso talvez seja o de um paciente com disfunção respiratória grave devido à Covid-19. Vamos dizer que esse paciente esteja entubado na UTI. Percebemos que, globalmente, há uma resposta a alguns medicamentos, como esteroides. Se dermos essa droga a esses pacientes, na maioria dos casos, teremos uma resposta. Mas muitas vezes nos defrontamos com pacientes que não respondem a isso e talvez tenham complicações que responderiam melhor a outra droga que quando analisada globalmente, mostrou-se menos eficaz. A medicina de precisão pode ajudar nesses casos.

Quem pode rá se beneficiar dessa abordagem?

Os Estados Unidos estão olhando para grandes bancos de dados com diferentes fenótipos, que é a forma como o genótipo de expressa, mas isso é baseado em muitos fatores. Alguns deles são difíceis de identificar apenas olhando para o paciente, mas ao olhar para um grande número de pacientes, é possível identificar mais facilmente diferentes grupos de pessoas com variáveis específicas, que se beneficiaram de determinada intervenção, enquanto outro grupo pode até ser prejudicado pela mesma intervenção. Por exemplo, se olhamos para dois pacientes internados na UTI com pneumonia, intubados e tomando medicamentos para manter a pressão arterial estável, parece ser uma situação muito parecida. Mas se considerarmos outros fatores que não são visíveis a olho nu, veremos que um desses pacientes pode ter um desfecho ruim, enquanto o outro não. Mais importante ainda, poderemos ver que a resposta de cada um deles a determinada terapia será diferente. Então eu acho que no futuro nós precisamos prestar mais atenção nisso. A questão no futuro será identificar quais são esses fatores. Será o genótipo? Talvez. Mas se você considerar que eu sou homem e você mulher e por isso temos genes diferentes, isso ainda não explica todas as diferenças. Muitas vezes, a questão está mais na expressão desses genes, no fenótipo, do que no genótipo em si. Então nós estamos no momento de tentar identificar esses fatores.

Como a medicina de precisão já está sendo aplicada na prática da medicina?

De muitas formas, em especial no tratamento de câncer, mas também das doenças autoimunes, nas quais conseguimos identificar que algumas respostas ocorrem pela presença de alguns receptores. Por exemplo, identificamos alguns receptores que são responsáveis por gerar uma resposta diferente da de outro paciente para o mesmo medicamento. Isso já está sendo usado no campo da medicina e será ainda mais no futuro. Na medicina intensiva, especificamente, podemos identificar populações por meio de biomarcadores, como alguns fatores de inflamação. Por exemplo, pacientes que expressam mais uma determinada citocina são mais propensos a responder a determinadas intervenções do que pacientes que expressam menos dessas citocinas. Além disso, podemos avaliar a resposta imune e até mesmo identificar pacientes que não estão respondendo tão bem a uma infecção e para os quais talvez precisaríamos aumentar a resposta imunológica. Então é mais ou menos esse o aspecto biológico de utilizar biomarcadores para escolher o melhor tratamento para um paciente. Definitivamente não estamos mais no campo de tamanho único, quando uma mesma coisa serve para todos. Temos dados preliminares mostrando que ferramentas de inteligência artificial também podem nos ajudar. Isso já começa a ser implementado em ferramentas de monitoramento, que estão sendo comercializadas. Elas são capazes de prever algo que irá ocorrer dentro de 20 a 30 minutos, com uma precisão muito boa.

Com essas análises em mãos, temos meios para melhor identificar qual será a terapia necessária para aquele paciente. O que esperamos para o futuro é que essas previsões possam ser feitas com maior precisão, maior antecedência e também que elas estejam disponíveis em larga escala. Mas, em algum nível, essas ferramentas já estão em uso.

A pandemia de Covid-19 teve alguma influência na medicina de precisão?

Na verdade, não muito. Ferramentas de medicina de precisão não estavam inicialmente disponíveis para o tratamento de pessoas com Covid-19. Devido à pandemia e à necessidade de entender tudo sobre a doença, o vírus, etc, nós consideramos que todos os pacientes eram mais ou menos iguais, no sentido de que todas as pessoas com quadros graves, por exemplo, eram tratadas da mesma forma e poucos aspectos sobre fatores de risco eram levados em conta. Exceto para alguns tipos específicos de pacientes, como imunossuprimidos, não havia um caminho para terapias específicas. Apenas mais recentemente fomos capazes de perceber que alguns medicamentos antivirais e de anticorpos seriam mais benéficos para um determinado grupo de pacientes que às vezes falha em responder à vacina, enquanto para outros, elas não trarão tanto benefício. Mesmo assim, esse tipo de abordagem ainda está mais para uma população alvo do que para a medicina de precisão em si.

Na sua opinião, a medicina de precisão é o futuro da medicina?

Eu diria que a medicina de precisão precisa estar no futuro da medicina, mas não estará sozinha. Isso significa que ainda precisamos de caminhos que irão beneficiar a maioria dos pacientes porque eu não sei se no atendimento de emergência, por exemplo, estarão disponíveis ferramentas de medicina de precisão que irão dizer como melhor tratar um paciente, na velocidade necessária. Então, provavelmente teremos uma combinação entre essas duas vertentes, no sentido de que, globalmente, com as diretrizes que temos, sabemos que devemos fazer x,y e z para favorecer a maioria dos pacientes. Mas teremos a medicina de precisão para refinar estes tratamentos e dizer “preste atenção a esse paciente porque ele também pode se beneficiar de outro medicamento para esse problema”. Isso será algo que provavelmente irá acontecer na prática em cerca de 5 a 10 anos.

Quais são os desafios para chegarmos lá?

O primeiro é encontrar marcadores que sejam acessíveis para todos. Se tivermos apenas algo muito caro, isso nunca estará amplamente disponível em todos os países, em todos os hospitais do mundo, em hospitais públicos e privados. O segundo aspecto, em especial para o campo dos cuidados intensivos, é ter uma rápida resposta. Por exemplo, se você tem um marcador que demora três semanas para aparecer, você só saberá que havia algo bom ou ruim para aquele paciente depois que o problema já aconteceu. Então precisamos ter algo que dê respostas rápidas, mesmo que não imediatas. E por último, é claro, ter à disposição medicamentos ou intervenções que realmente façam a diferença para esses pacientes específicos, que mais se beneficiam da medicina de precisão. Os antibióticos são um exemplo simples e muito interessante disso. Por exemplo, atualmente, um caso de pneumonia é tratado com diferentes tipos de antibióticos. Se pudermos ser mais rápidos para identificar qual cepa é responsável pela infecção, se ela é resistente aos antibióticos ou não, será possível tratar com mais rapidez e precisão. Mas também precisamos ter medicamentos disponíveis e eficazes para isso. Então ainda tem muito progresso a ser feito.

Quais são os benefícios do uso desse tipo de tecnologia na medicina?

O primeiro objetivo, é claro, é melhorar o cuidado ao paciente. O segundo, é tentar minimizar globalmente os custos da saúde porque, às vezes, usamos medicamentos caros e que não serão úteis para o paciente. Nesse caso, tudo vai depender do custo da intervenção e de termos marcadores bons e acessíveis, que sejam realmente benéficos para o paciente. Por exemplo, para uma pessoa jovem, que está muito doente e precisa de cuidados intensivos, nosso objetivo é que a UTI seja apenas um suporte breve, e que ela possa sair de lá tão apta quanto antes para continuar com sua vida normalmente.

Fonte: O Globo