Começou oficialmente neste domingo (2/6), em Brasília, a 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS). Com o tema “O Brasil que temos e o Brasil que queremos”, foi aberta a primeira mesa de debate, que contou com três importantes diligentes da saúde pública brasileira: Alicia Krüger – mulher travesti, farmacêutica, sanitarista, epidemiologista, especialista em Gestão das Políticas de IST/aids, Hepatites Virais e Tuberculose, e assessora de Políticas de Inclusão, Diversidade e Equidade em Saúde/SVSA, do MS (Ministério da Saúde); Michely Ribeiro – mulher negra, psicóloga, pesquisadora, ativista e articuladora em movimentos sociais deliberativos de políticas de saúde pública, com foco em populações negras, mulheres e juventudes; e Rogério Lannes – Jornalista especialista em comunicação em Saúde, Comunicação Pública, e Comunicação em Cultura.

“Saúde e democracia voltaram para esse país! Preciso começar parafraseando Sérgio Arouca que é um dos grandes pais desse Sistema Único de Saúde (SUS), e que nos ensinou que saúde e democracia precisam coexistir”, foi assim que Alicia Krüger iniciou sua fala na tribuna, onde trouxe luz ao debate acerca da realidade da população trans e travesti brasileira, e os esforços da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVS), do MS (Ministério da Saúde) – pasta na qual integra-, para garantir mais dignidade e justiça social, com políticas públicas voltadas à comunidade LGBT+, em especial, às mulheres transexuais e travestis.

‘’Enquanto tentam nos higienizar, é a travestilidade que nos traz aqui”, explanou Alicia orgulhosamente, quando discorreu sobre garantia de acesso ao direito básico e constitucional à saúde. A epidemiologista se atentou a falar de equidade, ao invés de igualdade, já que considera que igualdade é uma terminologia que não se aplica em termos de Brasil. “A igualdade sempre foi uma falácia do Sistema Único de Saúde, que desde a sua lei orgânica [Lei º 8.080] já se derrubava”, afirmou.

Segundo ela, quando discutimos igualdade, colocamos todos os cidadãos num pé que não existe. A especialista entende que a igualdade não se caracteriza como uma meta utópica, mas afirma categoricamente que a equidade é o caminho para que a igualdade seja alcançada.

Ainda de acordo com a palestrante, para além de se adaptar, o estado precisa garantir que todo cidadão tenha estrutura para alcançar plena cidadania. “Não basta cuidar dos indivíduos, é preciso cuidar do SUS. Não basta dar os mecanismos a cada indivíduo, é preciso dar também condições para que trabalhadores e trabalhadoras trabalhem da melhor maneira possível”, destacou.

Nesse sentido, Alicia Krüger elencou como fundamental e urgente, o financiamento correto do SUS. Em seguida, a assessora do ministério criticou a lógica cis-heteronormativa, que tende a considerar e condidiconar a trageneridade como exeção. 

Na sua crítica, Alicia destacou um estudo recente realizado por um grupo de pesquisadores brasileiros colaboradores da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), que estimou em uma modelagem matemática que pelo menos 2% da população brasileira se identifica como trans. Ou seja, são mais de 4 milhões de pessoas trans vivendo no país. “Pessoas trans podem e estão sim nas esquinas prostituindo, mas desde que seja com dignidade. Porém, pessoas trans também estão aí e estão aqui na frente, pela primeira vez na história das conferências nacionais”, falou.

Durante sua contribuição, ainda incentivou profissionais e movimentos de saúde anti-transfóbicos, e a desconstrução de estigmas que geram iniquidades programáticas. “Temos um grande exemplo que é a epidemia de HIV/aids no país, essa foi a última grande epidemia do século passado, já a primeira grande epidemia deste século e que não será a única, foi a de Covid-19. Na minha opinião, enquanto epidemiologista, nós cometemos o mesmo grande erro de falar de grupo de risco”. 

A especialista considera as vulnerabilidades sociais e programáticas em relação a ambas as epidemias, em especial a epidemia de aids, mas chama atenção para os estigmas relacionados às pessoas trans que estão mais vulneráveis ao HIV, e outros grupos sociais mais expostos ao vírus. “Pessoas trans são jogadas para fora das escolas, e são tolhidas do direito básico de acesso à educação. Como essas pessoas vão saber o que é o Vírus da Imunodeficiência humana (HIV) ou o que é a Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida (Aids) e os mecanismos de prevenção?”, questionou. 

A provocação feita pela conferencista rechaçou os agravos gerados por desigualdades sobrepostas. “Ser preto, ser travesti, ter uma condição socioeconômica baixa, que são só características de uma pessoa, causa uma sinergia de vulnerabilidades, gerando desfechos ruins na saúde. E jamais podemos analisar um dado de HIV sem olhar os determinantes sociais no processo que leva pessoas a adoecerem de padrões diferentes”, afirmou. 

Acesso a PrEP

A PrEP (profilaxia Pré-Exposição ao HIV), integra o leque de métodos preventivos existentes para o HIV. Essa profilaxia, que pode ser tomada diariamente ou sob demanda, e acessada gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) também foi tema de discussão no primeiro dia da CNS (Conferência Nacional de Saúde).

Alicia Krüger defendeu a disponibilização da PrEP em larga escala fora dos espaços clássicos de saúde, e anunciou projeto do Ministério da Saúde de oferta de PrEP em ambulatório trans do interior do país. “Selecionamos ambulatórios localizados em lugares mais vulneráveis olhando para os critérios epidemiológicos”, disse.

Plano nacional de eliminação da Transmissão Vertical do HIV

A gestora sinalizou também o plano nacional de eliminação da transmissão vertical (TV) do HIV. O Brasil é um dos únicos países do mundo com dimensão continental, que já mira a eliminação da transmissão vertical e já tem isso como realidade em municípios, como a grande São Paulo, Curitiba, e Guarapuava, cidade do interior do Paraná, que eliminou tanto a Transmissão vertical de HIV, quanto a de Sífilis. Alicia fez questão de publicizar este fato na conferência e afirmou que a saúde integral das mulheres precisa ser promovida contemplando todas as pessoas que engravidam. 

“Precisamos pensar em saúde sexual e reprodutiva para todos, pois o conceito de homem e mulher não passa apenas pela biologia, mas também pelo tempo e pela sociedade. Cabe a nós fazermos hoje aqui a revolução de pensamento. Mulheres trans e travestis são mulheres!”

Antes de passar a palavra, Alicia finalizou sua participação dividindo a seguinte frase que ouviu em consultório: “Travesti tem pressa, porque a expectativa de vida é tão curta que a gente precisa viver, eu não vou ficar três meses na fila do SUS esperando para a médica nem sequer olhar para a minha cara”. 

Genocídio negro e índigena

Michely Ribeiro, escolheu o ideograma africano, Sankofa, para abrir seu discurso. Sankofa é representado por um pássaro com a cabeça voltada para trás ou também pela forma de duas voltas justapostas, espelhadas, lembrando um coração. A etimologia da palavra, em ganês, inclui os termos san (voltar, retornar), ko (ir) e fa (olhar, buscar e pegar).

Ao apresentar a sabedoria do povo Akan, Michely conceituou que este provérbio representa muito bem o tema proposto na mesa [O Brasil que temos e o Brasil que queremos].

Coube à pesquisadora pensar saúde, populações negras e indígenas, resgatando a historicidade do Brasil, com uma proposta decolonial, ou seja, entendimento desprendido da lógica de um único mundo possível (lógica da modernidade capitalista).

“Não é possível chegar a essa compreensão do Brasil que temos sem resgatar a história de constituição do nosso país, que é feita a partir de violências, devido o extermínio da população indígena. Genocídio este que segue em curso e que ficou muito mais evidenciado através da pandemia de covid-19 e a situação vivida pelos povos indígena devido ao aumento da invasão e exploração de seus territórios, tudo isso fruto da desestruturação da assistência à saúde indígena e do abandono das políticas de proteção territorial desses povos”, afirmou.

A palestrante destacou que o racismo é um projeto político que segue sendo operante quando falamos também das populações negras, vislumbrando sobretudo, o genocídio de jovens negros. “Enquanto estaremos aqui nesta mesa fazendo um debate extremamente importante sobre a realidade do nosso país, cinco jovens negros serão assassinados pela policia”, explanou.

De acordo com a especialista, a pandemia de covid-19 escancarou as desigualdades estruturais e estruturantes no país em forma de disparidades. “Houve crescimento econômico à custa de nossas vidas. Racismo e sexismo, no Brasil, segue sendo fonte de lucro”, lamentou.

“Estamos aqui buscando fortalecer a efetivação do Sistema Único de Saúde por meio do exercício do controle social. Falta muito na efetivação de direitos à saúde e direitos humanos”, completou.

Para ela, a fome no norte e no nordeste, a insegurança alimentar até nas grandes metrópoles, as inúmeras mortes de mulheres por causas evitáveis, escancaram o que de pior existe entranhado no seio da sociedade brasileira. 

“Nos lares em que se ganha um salário mínimo por pessoa, a fome quase desaparece, exceto quando este lar é liderado por uma pessoa negra. A realidade mostra que mesmo quando os rendimentos de uma família negra ficam acima de um salário mínimo por pessoa, a insegurança alimentar ainda é maior. A fome no Brasil tem cor, e tem lugar!”

“A democracia não é executada apenas pelo voto, ela é efetivada através do pleno exercício da cidadania, e a ausência da mesma, para muitas populações faz com que a democracia não se efetive”, concluiu.

O papel da comunicação

Fechando o ciclo de palestras do eixo I da CNS (Conferência Nacional de Saúde), o jornalista Rogério Lannes Rocha celebrou os muitos anos de conferência e rememorou edições passadas, citando desafios impostos a cada época.

O comunicador fez questão de fazer menção à conquista da Independência do Brasil, e a participação feminina histórica para emancipação do Brasil colônia. “A independência não foi dada, foi conquistada e com o protagonismo de mulheres”, disse.

Rocha falou da conexão entre comunicação em saúde e SUS, afirmando a comunicação como direito fundamental à garantia de demais direitos sociais.

Ele ainda reforçou a narrativa trazida por suas companheiras acerca da formação do Brasil. Para o jornalista, a comunicação não deve se eximir da responsabilidade da construção de uma sociedade com mais justiça social.

“Esse é um país que é construído em cima do genocídio indígena e negro, que tem a escrividão como estrutura nas nossas veias de sociedade, a colonização da mente e ainda coloniza internamente. É com democracia representativa e participativa, e com muita disputa que vencemos o retrocesso”, finalizou.

Assista o debate na íntegra:

Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

CNS – Conselho Nacional de Saúde

Site oficial: https://conselho.saude.gov.br/

E-mail: cns@saude.gov.br

Instagram: conselhonacionaldesaude.cns