Morreu na tarde desta quarta-feira (14), em São Paulo, aos 64 anos, vítima de parada cardíaca, a incansável ativista do movimento aids Jacqueline Rocha Côrtes. Espiritualista, mãe da Luara e do Gilson, professora de inglês e ex-funcionária da ONU, ela começou sua jornada em Niterói, Rio de Janeiro, em 1º de fevereiro de 1960. Sua vida, porém, foi marcada por inúmeros nascimentos e renascimentos.

Seu primeiro grande desafio foi nascer em um corpo que não correspondia à sua identidade. Ainda na primeira infância, aos 4 anos, enquanto brincava descalça em São Paulo, Jacque já se reconhecia como menina. Contudo, foi apenas aos 16 anos, ao ler uma notícia no jornal, que ela descobriu o que significava ser transexual. Foi nesse momento que percebeu que existiam outras pessoas como ela: de um sexo, mas sentindo-se de outro.

Por volta dos 20 anos, Jacque começou a se vestir com roupas femininas e a se maquiar em ocasiões específicas, como festas e encontros com amigos, onde acreditava poder expressar sua verdadeira identidade. Com o tempo, sua verdade foi se afirmando cada vez mais, culminando em um tratamento hormonal aos 38 anos, seguido pela cirurgia de readequação genital aos 41. Essa jornada culminou no casamento e na maternidade.

O diagnóstico

Em 1994, aos 34 anos, uma nova revolução abalou a vida de Jacque: o diagnóstico de aids. Esse momento foi um divisor de águas. Em 6 de junho de 1994, ao buscar o resultado do teste, ela recebeu a notícia como uma “sentença de morte com aviso prévio”.

No entanto, Jacque se voluntariou para um ensaio clínico e, a partir da Lei Sarney, iniciou o tratamento antirretroviral.

Ativismo pulsante

O apoio do movimento social foi crucial para sua sobrevivência. No Grupo de Incentivo à Vida (GIV), Jacque descobriu que a aids era uma doença que afetava o mundo inteiro, não apenas a ela – e isso lhe deu uma nova chance de vida. Ela saiu do isolamento, encontrou apoio e testemunhou diferentes pessoas vivendo com aids. Em 1996, foi uma das fundadoras do grupo que originou a atual Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids (RNP+ Brasil). Também participou de forma efetiva do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas.

A partir de 2000, com um ativismo intenso tanto no Brasil quanto no exterior – incluindo participações em diversas assembleias da Organização das Nações Unidas –, Jacque passou a trabalhar com a questão da aids. Atuou na área de Cooperação Internacional do então Programa Nacional de Aids e no Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids (Unaids), onde se tornou a primeira consultora transexual.

Sua vida, no entanto, não se limitou a essas lutas. No final de 1999, Jacque sofreu um infarto. Em janeiro de 2000, após 11 horas de cirurgia cardíaca, teve uma parada cardíaca e passou por uma experiência de quase-morte, que reforçou sua fé na espiritualidade.

Aposentada, ela viveu por muitos anos na cidade praiana de Araruama, no estado do Rio de Janeiro, ao lado do ex-marido e dos filhos.

Através de todas as revoluções em sua vida, Jacque permaneceu firme até o último suspiro na busca por ser quem sempre foi.

O velório e sepultamento serão realizados nesta quinta-feira (15), no Cemitério São Pedro, em São Paulo.

Confira a seguir as homenagens de amigos e ativistas de todo o Brasil:

 

Nair Brito, do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas

“Jacqueline, nossa Jacque. Você desbravou caminhos árduos para as mulheres trans. No MNCP, você abriu o espaço que era seu e de todas nós. Obrigada pela ousadia, força e pioneirismo. O movimento de mulheres com aids no Brasil carrega sua marca em cada olhar, gesto e conquista. Valeu, amiga. Até breve!”

Júlio Caetano, amigo

“Jacqueline Rocha Côrtes era uma mãe e mulher de pura inspiração, uma vida marcada por luta, empoderamento e sensibilidade. Com certeza, a espiritualidade amiga e seus ancestrais a receberão de braços abertos.”

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Dra. Maria Clara Gianna, ex-coordenadora do CRT/Aids São Paulo

“Jacqueline Cortes, uma querida amiga de sorriso largo, ativista, e mãe dedicada que sempre adorava falar sobre seus filhos. Sua atuação foi fundamental no enfrentamento ao HIV e à aids. O documentário “Meu Nome é Jacque”, que retrata sua vida e cotidiano, é imperdível! Um dos nossos últimos encontros foi durante a pandemia de COVID-19, quando Jacque contribuiu, juntamente com o Movimento Nacional de Cidadãs Posithivas, organizações latino-americanas e ONGs/Aids, para um projeto que garantiu que, durante o isolamento social, medicamentos e acolhimento chegassem até as PVHA (Pessoas Vivendo com HIV/aids). Sinto que qualquer coisa que eu diga será insuficiente para traduzir a importância de Jacque. Fica aqui meu profundo agradecimento e enorme respeito por essa mulher guerreira.”

Dr. Pedro Chequer, ex-diretor do Programa Nacional de DST/Aids

“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus: tempo para nascer, e tempo para morrer… assim registra Eclesiastes, 3. Hoje tomo conhecimento que Jacque cumpriu seu tempo. Partiu precocemente? Não nos cabe questionar, chegou seu tempo de partir, MAkTUB! Convivemos por longa data e por duas vezes trabalhamos juntos, no Programa de Aids e no Unaids Brasil, mas mesmo antes, já a tínhamos como incansável parceira na luta contra a aids e a discriminação. Resoluta, inteligente, ciosa de seus direitos e dos direitos das pessoas que vivem com HIV, das pessoas trans, das minorias como um todo. Direitos de cidadania, não importa o rotulo que se dê. Grande contribuição trouxe a essas causas, como cidadã e como profissional. Você partiu Jacque, mas fica seu legado e este será lembrado por todos aqueles que a conheceram ou tomaram conhecimento dos seus feitos. Que tenha seu nome por Adonai inscrito no Livro da Vida!!!”

Jean Carlos Dantas, do CRT/Aids São Paulo (via facebook)
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“Hoje mais uma estrela subiu aos céus. O nome dela é Jacqueline Rocha Cortes. Uma das minhas professoras no campo do ativismo/direitos humanos e políticas públicas para o HIV/aids. Jacque, era uma dessas pessoas que marcam a vida de quem a conheceu. Ela realmente fez uma bela limonada com os limões azedos que a vida lhe presenteou. Segue linda, minha amiga.”

Roseli Tardelli, diretora da Agência Aids

“Tivemos o prazer e a alegria de conviver e trabalhar com nossa querida Jacqueline Côrtes. Inteligente, rápida, prestativa, incisiva, acolhedora, amiga, uma de suas grandes qualidades foi nunca deixar a peteca cair: sempre dava um jeito de contornar ou resolver uma situação desagradável. Coragem, fibra e determinação nunca lhe faltaram. Que sua trajetória, visão aberta e ampla da vida possam inspirar as pessoas que, daqui para frente, tiverem a oportunidade de conhecê-la através do filme que foi feito em homenagem a ela ou pela busca de seu legado.Eu tive este prazer. agradeço por isso. Sou kardecista por estudos e delicadeza da vida. Aposto que quando ela se inteirar que é um espírito eterno como todos somos, irá correndo atrás do Beloqui e do Araújo para propor algum projeto interessante para seguir fazendo a diferença que fez para o bem na Terra.”

Em 2023, Jacque foi convidada pela Agência Aids para participar do Ciclo de Palestras sobre HIV/aids no Senac São Paulo.

Ariadne Ribeiro, do Unaids Brasil (via facebook)

“A maior! Sem dúvidas, para mim é a maior! Meu encontro com ela foi antes, bem antes de conhecê-la pessoalmente. A que abriu os meus caminhos antes que eu pudesse sonhar que os trilharia. Quero pra sempre me lembrar do teu sorriso. A que trilhou antes de mim, a possível cirurgia, que pra mim importava. A vida depois do diagnóstico, foi possível, porque havia esperança no seu sorriso. Eu tive tanta sorte de encontrá-la no caminho e de me nutrir de toda a sua sabedoria. Ai @jacquelinerochacortes você vai fazer tanta falta! A primeira pessoa trans a adentrar as Nações Unidas como funcionaria, a que abriu meu caminho profissional. A Jacque do filme “meu nome é Jacque” pra sempre terá no meu coração a luz da ancestralidade que nos é possível num mundo que ainda nos oprime e violenta por sermos quem somos. Ela foi o raio de esperança que criou pontes. Ela pra sempre será, minha amiga Jacque!”

Instituto Cultural Barong (via facebook)

“No Barong, estamos consternadas. @jacquelinerochacortes é um nome importante para os movimentos sociais de luta contra a aids, LGBTI+ e, principalmente, para o movimento social de mulheres transexuais redesignadas. Uma lutadora, Jacqueline foi importantíssima pra gente aqui no Barong. Na animação “Respeita meu nome”, ela emprestou sua voz e sua fisionomia para ser transformada num desenho animado.
O filme de animação “Respeita meu nome” trabalhou o passo a passo da mudança de nome para pessoas trans de forma oficial. A você, Jacqueline, nosso mais profundo agradecimento. Aos filhos, irmãos, familiares e amigos, nossos sentimentos. Jacqueline Rocha Côrtes, presente!”

Christian Schneider, presidente da Gilead Sciences no Brasil

“Foi com muita tristeza que recebi a notícia do falecimento da Jacque. Meus sentimentos profundos para a toda a sua família e amigos. A Jacque foi uma fonte de inspiração. Ela tinha uma energia e um poder de transformação incríveis. Sua marca como mulher transexual transformou-a numa profissional muito competente, que conseguia levar conhecimento sobre todos os desafios enfrentados pela comunidade trans de forma sensível e gentil, promovendo reflexão e mudança de paradigma sobre a causa pela qual lutava bravamente. Foi assim que surgiu o Programa Transmutando Vidas, possivelmente a iniciativa com o maior conteúdo gerado sobre a comunidade trans, difundido entre nossos colaboradores para a desmistificação de estigmas imprimidos sobre pessoas trans. Temos orgulho de tê-la tido como consultora e mulher inspiradora na busca constante por uma cultura de inclusão e diversidade.”

Silvia Almeida, do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas

“O que dizer quando as pessoas que marcaram nossas vidas voltam para o plano espiritual? Falando de Jacqueline Rocha, posso afirmar que ela viveu muito… Viveu intensamente, em vários aspectos, em diversas formas de ativismo, ocupando inúmeros espaços e lugares… Viveu momentos e sonhos, muitos sonhos… E haja coração para tanto! Agora, o coração de Jacque foi bater no universo. Descanse, amiga, descanse até seu próximo desafio! Gratidão.”

#jacquepresente!

Redação da Agência de Notícias da Aids com informações