Em um país onde um jovem negro morre a cada 23 minutos, onde negros e negras representam 78% de todas as pessoas mortas por armas de fogo; onde a população negra tem os piores indicadores e desfechos em relação a saúde, emprego, renda, educação e participação política, Thiago Rodrigues é um sobrevivente e sua história emerge como uma narrativa inspiradora de superação e resistência diante do racismo que não deixa marcas somente no corpo físico, mas também na subjetividade e identidade racial.

A história do ativista faz parte da série especial da Agência Aids neste Novembro Negro, que reconhece, homenageia e apoia a luta e reivindicações da população preta.

Thiago se coloca no mundo como um homem negro, gay, de axé e vivendo com HIV. Natural do Espírito Santo, nasceu e cresceu em uma família que propiciou uma boa infância, dentro de suas possibilidades.

A educação

Já durante sua pré-adolescência, ele recorda que sua mãe o levou para prestar uma prova para ingressar em uma escola particular em seu estado, em busca de melhores condições de ensino. Thiago e sua família sempre atribuíram grande importância e valorização à educação,  a qual entendem como chave para a conquista de uma vida melhor. Ele compartilha que a mãe, em sua humildade e simplicidade e ciente da relevância de oferecer oportunidades educacionais mais amplas, tomou a iniciativa de levá-lo para concorrer à vaga, um gesto carregado de esperança e sacrifício que demonstrava o comprometimento dela com o crescimento e desenvolvimento de seu filho. 

“Eu consegui uma bolsa de 80%, mas ainda assim, tendo em vista a condição dos meus pais, seria muito difícil de arcar com as outras demandas. Eu teria que custear os livros, passagem, alimentação, todas as coisas que uma escola particular exige. Eu lembro que, no primeiro dia de aula, falei que aquilo não era pra mim. Cheguei em casa e pedi para a minha mãe para voltar para a escola pública, que eu daria o meu melhor, mas que eu não voltaria para um colégio particular”. 

Então, Thiago desistiu da oportunidade, mas seguiu comprometido com seus estudos. “Esses foram os marcos da minha pré-adolescência, mas a minha mãe com todo o entendimento, me transferiu novamente para a escola pública, e eu dei o meu máximo, nunca fui reprovado, sempre fui um aluno nota dez”.

Sonhos

Em perspectiva de família e de futuro, conta que sempre foi muito singelo em seus sonhos, com pedidos simples e sinceros. “As pessoas me perguntavam o que eu queria ser quando eu crescesse e eu enchia a boca para dizer que queria ser motorista de ônibus. Minha mãe ficava revoltadíssima, porque para ela essa era uma profissão que não garantiria um futuro seguro para uma criança.  Não me tornei motorista de ônibus, mas ainda é uma das minhas paixões de criança”.

“Já exerci a gerência de dois restaurantes, um fast-food e uma antiga franquia aqui no estado, sem possuir formação de nível superior. Em determinado momento, tentei teologia e história, por conta do desejo de lecionar, mas acabei não aproveitando as oportunidades para ingressar na faculdade naquela época. Hoje, aos 35 anos, não tenho nível superior. Não vejo mais a busca por um diploma universitário como meu objetivo principal, mas no contexto do ativismo, sinto a necessidade de atualizar meus conhecimentos, principalmente devido às mudanças na linguagem”, compartilhou.

Ativismo na veia

O tempo passou e Thiago cresceu. Hoje militante aguerrido, ele encontrou no movimento social de luta contra a aids o apoio e acolhimento que precisava após atentar  contra a própria vida.

O capixaba vinha de uma sequência de acontecimentos que abalaram seu emocional e o lançaram em uma depressão profunda. Há pouco mais de dois anos descobriu seu diagnóstico positivo para o HIV. 

Ele conta que viu a morte de perto, mas sobreviveu, e acredita que há nisso um propósito muito maior. “Eu fiz tudo conscientemente, pesquisei e, da forma como tentei tirar a minha vida, tinha menos de 3% de chance de sobreviver. E estou aqui, dentro desses 3%”.

Enquanto pessoa vivendo com HIV, sonha em ocupar um cargo público para se tornar uma voz no parlamento pelos direitos de outras pessoas vivendo com HIV/aids.  “Quero me candidatar até para continuar a luta de uma outra visão. Ainda hoje não temos muitas figuras políticas que vivem com HIV e que falem abertamente sobre sua sorologia. Quero contribuir para tirar a pauta da invisibilidade, e compor uma bancada que possa nos representar numa integralidade maior, para caminharmos um pouco mais enquanto movimento social”.

“Precisamos ter acesso à educação justamente para ter essa imagem descriminalizada, porque a gente que vem do morro, da favela, é muito criminalizada, até mesmo no ambiente profissional e, quando se atrela isso ao fator de ser negro. Ainda somos desqualificados, mesmo quando temos qualificação. Então, eu acredito que a educação sempre me trouxe isso: gostar de aprender para ensinar. Acho que ser educador é algo nato, e na nossa sociedade, a gente tem necessitado muito de formadores de opinião. Em muitos espaços onde chego, tenho percebido que não existem mais tantos pensadores nossos como antigamente. Existe uma parcela muito pequena que se pré-dispõe a ser um jovem pensador, a ser alguém que vá em busca de fazer algo de impacto para gerar alguma mudança [estrutural] para si e para os seus”.

Autoimagem, identidade e relação com a negritude

Thiago levou um tempo para internalizar a força ancestral e simbólica associada à sua negritude. Entender-se como um homem preto e, consequentemente, abraçar plenamente sua identidade afro foi um processo,  processo este de auto descoberta que, segundo ele, foi desencadeado por acontecimentos políticos marcantes, tanto em nível nacional quanto global. Com o despertar para a importância de compreender e valorizar sua herança cultural, a tomada de consciência de Thiago sobre sua identidade afro passou a ser enriquecida pela compreensão do papel histórico e social que ele desempenha como indivíduo negro em um contexto mais amplo. Ele afirma que essa mudança de paradigma não apenas moldou sua perspectiva pessoal, mas também o impulsionou a se tornar um defensor ativo da igualdade racial coletivamente.

“Há quase dez anos, eu não tinha essa clareza de que sou um homem preto, e de me reconhecer enquanto uma pessoa negra. Ao longo de sua jornada, Thiago percebeu que rotular a si mesmo como “pardo” e adotar a terminologia “parda” representava um mecanismo de apagamento de sua negritude. “Eu passei a me entender como um homem negro, que vem do gueto, do morro…”

Hoje, Thiago Rodrigues considera que é mais do que uma história de sobrevivência, é um ativista incansável que transformou sua dor em força. Secretário Político da RNP+ES, para ele o ativismo tornou-se o catalisador de suas memórias, dando-lhe voz para desafiar estereótipos e lutar contra as injustiças sociais que permeiam a vida de pessoas negras. A paixão revolucionária que Thiago faz questão de destacar está presente desde sempre em sua vida, o impulsiona todos os dias para ir além do que a injustiça racial lhe reserva, e ele almeja um novo capítulo em sua trajetória: a candidatura a deputado estadual, vislumbrando uma plataforma que represente não apenas a sua voz, mas a de seus pares que enfrentam batalhas semelhantes.

“Viver com HIV hoje me fez viver de novo e de verdade. Respiro o movimento social e, para além do discurso, quero sempre trazer essa sensibilidade humana”.

Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

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