A organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras apresentou, em Genebra, os custos detalhados de um estudo clínico que ajudou a identificar um regime mais curto e ministrado por via oral para o tratamento de tuberculose resistente a medicamentos. O custo total do estudo clínico realizado por MSF foi de 34 milhões de euros. Essa é a primeira vez que esse tipo de dado detalhado é compartilhado de maneira pública, desafiando práticas pouco transparentes relacionadas ao desenvolvimento de medicamentos e o discurso recorrente da indústria farmacêutica de que os altos preços dos medicamentos são necessários para recuperar investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D).

O custo de ensaios clínicos frequentemente responde pela maior parte do custo total de P&D de produtos relacionados à saúde, ainda que os valores reais permaneçam ocultos, sem que dados desagregados de custos biomédicos de P&D estejam disponíveis. As estimativas atuais para a totalidade dos custos de P&D para o desenvolvimento de um novo fármaco variam de US$ 43,4 milhões até exorbitantes US$4.2 bilhões, utilizando metodologias diversas.

O estudo, denominado TB PRACTECAL, é um marco importante para o aumento da transparência dos custos biomédicos de P&D, o que pode abrir caminho para modelos mais justos e assegurar o acesso amplo a tratamentos que são urgentemente necessários para salvar vidas.

A partir deste trabalho, MSF desenvolveu uma ferramenta (“toolkit”) para registro de custos de ensaios clínicos chamada ‘Transparency CORE’. MSF apela a todos os entes públicos e organizações sem fins lucrativos para que publiquem os custos de seus ensaios clínicos e apoiem o desenvolvimento de um padrão internacional para o registro desses valores.

“Esperamos que a nossa divulgação dos custos do ensaio clínico para identificar um regime de tratamento melhorado para a tuberculose resistente a medicamentos sirva como um chamado para que outras entidades públicas e sem fins lucrativos se juntem a nós e partilhem publicamente os custos de seus ensaios clínicos para garantir uma maior transparência em custos médicos de P&D”, disse Bern-Thomas Nyang’wa, diretor médico de MSF e pesquisador-chefe do ensaio TB-PRACTECAL. “Encorajamos os patrocinadores e implementadores de ensaios clínicos a experimentarem a nossa ferramenta Transparency CORE’ e a ajudar a desenvolvê-la como um guia para facilitar a publicação de dados de custos. Como há muito pouca transparência nas despesas de P&D, divulgar os custos dos ensaios clínicos é um passo transformador no sentido de expor o que realmente é gasto com a inovação médica e de construir um futuro onde o acesso a medicamentos e ferramentas médicas não seja prejudicado por preços elevados.”

A transparência dos custos dos ensaios clínicos é necessária para que haja mais informação sobre políticas de preços, permitindo o surgimento de formas inovadoras de financiar P&D biomédica. A narrativa predominante sobre os preços dos produtos médicos ecoa de forma acrítica a afirmação que já vem sendo feita há muito tempo pela indústria farmacêutica, de que são necessários preços elevados para recuperar os altos custos de P&D e assim sustentar a inovação futura. Contudo, pesquisas demonstram não haver ligação entre os elevados preços dos medicamentos e os gastos da indústria em P&D. Apesar disso, as estimativas de gastos em P&D da indústria farmacêutica ainda são utilizadas como parâmetro para pautar os debates sobre preços relacionados com produtos médicos. À medida que analistas fora da indústria conseguiram obter acesso a informações mais diferenciadas sobre os custos de P&D, incluindo contribuições financeiras significativas dos setores público e filantrópico, este conhecimento deixou o debate sobre valores um pouco mais transparente e alimentou o ativismo global por preços mais justos.

Durante mais de uma década, um medicamento essencial para a TB, a bedaquilina, permaneceu fora do alcance das pessoas com tuberculose resistente devido ao seu preço exorbitante. A droga é a espinha dorsal de todos os regimes contra tuberculose resistente, incluindo o regime TB-PRACTECAL.

A revelação, feita por um estudo acadêmico, de que o investimento público em P&D da bedaquilina era até cinco vezes superior ao investimento privado, teve papel fundamental num movimento global liderado por ativistas de TB e pela sociedade civil que resultou numa redução significativa do preço deste medicamento que salva vidas.

“O movimento global que pressionou por uma redução significativa do preço da bedaquilina demonstrou que a transparência dos custos de pesquisa e desenvolvimento pode levar a um maior acesso a ferramentas médicas e ajudar a salvar mais vidas”, disse Roz Scourse, consultora de políticas públicas da Campanha de Acesso de MSF. “A narrativa infundada, mas dominante, de que são necessários preços elevados para recuperar os elevados custos de P&D já não pode continuar a ser um território livre de evidências – esta informação é uma peça importante do quebra-cabeças político que tem de ser montado para informar o preço dos produtos médicos e quem tem acesso. Hoje, estamos desafiando esta narrativa e mostrando que a publicação detalhada dos custos dos ensaios clínicos pode – e deve – ser feita. Instamos todos aqueles que financiam e conduzem ensaios clínicos – e P&D de forma mais ampla – a divulgar publicamente os seus custos, a fim de dotar governos, agentes políticos, pesquisadores, ativistas e comunidades afetadas com as informações vitais necessárias para ter um diálogo baseado em evidências sobre políticas de preços, e como podemos garantir que os esforços de P&D realmente resultem em acesso equitativo.”

Dados detalhados sobre os custos dos ensaios clínicos podem ajudar a aperfeiçoar ainda mais a concepção de futuras iniciativas de P&D, incluindo incentivos inovadores e mecanismos de financiamento – especialmente para áreas onde há falta de interesse comercial, como a tuberculose, a resistência antimicrobiana e os agentes patogênicos de potencial pandêmico. A transparência sobre os custos detalhados dos ensaios clínicos também pode apoiar a elaboração de orçamentos e o planeamento financeiro dos ensaios clínicos, especialmente para medicamentos sem fins lucrativos ou financiados com recursos públicos, e para contextos onde ensaios clínicos são feitos fora dos países de alta renda. A falta de tais dados representou um desafio quando o TB-PRACTECAL estava sendo planeado.

“Como a Assembleia Mundial da Saúde (que acontece em maio) marcará o 5º ano desde a adoção da resolução da OMS sobre transparência, todos os governos devem tomar medidas urgentes para promulgar legislação que obrigue a divulgação dos custos desagregados de P&D, incluindo custos de ensaios clínicos, especialmente quando a pesquisa recebeu recursos públicos, disse Scourse.

Fonte: Medicina S/A