Uso de PrEP entre mulheres cisgênero teve aumento no Brasil — Foto: Catarina Bessell

O Brasil bateu recorde de mulheres que recorreram à Profilaxia Pré-Exposição como método preventivo contra o HIV, terapia comumente associada a outro público no país: homens gays. O aumento de brasileiras iniciando o uso foi de 55% em 2022 – cenário nunca antes visto. Junto a especialistas de saúde pública e sexualidade, Marie Claire investiga quais são os fatores que podem ter levado a essa mudança no comportamento feminino – e o quanto ainda é preciso caminhar para garantir que o acesso igualitário seja uma realidade.

A primeira vez que a corretora Mari*, de 53 anos, ouviu falar em Profilaxia Pré-Exposição, a PrEP, foi em uma casa de sexo. Em setembro de 2022, se tornou cliente regular de um estabelecimento com cabines de gloryhole – que são salas com buracos na parede por onde é possível ter relações com vários parceiros, sem vê-los. “Assinei o divórcio em um dia e no outro estava lá a convite de um homem que conheci no Tinder. Achei maravilhoso e, agora, vou pelo menos a cada dez dias para extravasar”, conta.

O conhecimento veio do dono do estabelecimento, de quem se tornou amiga, como um conselho: “Você tem que se cuidar, usar PrEP para não correr risco”. Antes dessa conversa, Mari sequer tinha ouvido falar sobre o método, que previne as chances de uma infecção pelo HIV em mais de 90%.

Desde janeiro, quando conseguiu acesso a profilaxia, precisa tomar, todos os dias, um comprimido azul ovalado em horário regulado – o uso é similar ao do anticoncepcional e também depende da adesão consistente para fazer efeito. Depois dos primeiros 20 dias, que é o tempo necessário para que a mucosa vaginal absorva a substância, o corpo já está preparado para barrar a entrada e propagação do HIV, caso seja exposto. O que garante essa ação é a combinação dos medicamentos tenofovir desoproxila e emtricitabina, que impedem que o vírus se multiplique ao entrar no organismo e faz com que possíveis células infectadas sejam descartadas pelo sistema imunológico.

Disponível desde 2017 no Sistema Único de Saúde (SUS), a tecnologia preventiva revolucionou a abordagem sobre HIV no mundo e é apontada como um dos fatores que reduziram o número de casos no Brasil – desde que usada em conjunto com a camisinha, já que a PrEP não blinda o organismo de outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). No último dia 12, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a implementação do cabotegravir, a PrEP injetável de ação prolongada. O medicamento é inovador e pode facilitar ainda mais o uso e aderência.

De segurança e eficácia cientificamente comprovada, há 90% de proteção via sexo vaginal e 99% por sexo anal – a mucosa dessa região absorve mais rápido. O medicamento pode ser usado tanto a longo prazo, quando há mais atividade sexual e possível exposição, como por períodos curtos, sem alteração na eficácia. É o que explica a farmacêutica, epidemiologista e sanitarista Alícia Krüger, assessora de Políticas de Inclusão, Diversidade e Equidade da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA), do Ministério da Saúde (MS), que participou da equipe de implementação da PrEP no SUS.

Desde a disponibilização do método, mulheres cisgênero e outras pessoas com vulva que estejam vulneráveis ao contágio podem acessá-lo. É o caso das que são trabalhadoras sexuais ou estão em relações sorodiferente (em que uma pessoa tem HIV e a outra não). Mas, no Brasil, o acesso e a divulgação foi centrado, inicialmente, em pessoas com pênis, como homens gays ou hétero e algumas mulheres trans e travestis — por mais que o uso por parte delas ainda esteja abaixo do ideal. Por serem considerados os grupos mais expostos, são chamados de populações-chave.

A PrEP está disponível no SUS desde 2017. Versão injetável foi aprovada pela Anvisa neste mês — Foto: Catarina Bessell

Apesar de ter reforçado a segurança entre essa população, principalmente entre os gays, houve pouco direcionamento sobre o uso da PrEP às pessoas com vulva. Desde as peças de divulgação até o consultório, elas são pouco informadas sobre a tecnologia. Assim, não viam a PrEP como uma ferramenta que poderia contemplá-las – ou sequer a conheciam.

A privação a essas informações tira delas a autonomia de decidir como querem fazer a prevenção sexual e ter controle sobre seus próprios corpos. Mas dados do MS indicam que é possível que estejamos diante de um cenário de mudança, já que mais brasileiras cisgênero passaram a iniciar o uso de PrEP.

Segundo o Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis da SVSA, 3.060 mulheres cisgênero começaram a usar o método em 2022. Por mais que signifique um número bem menor que se comparado aos homens cis, implica um aumento de 55% em comparação ao registrado em 2021. A série histórica do MS aponta ainda que elas são a segunda população que mais adere à PrEP no país, atrás apenas dos homens gays, que representam mais de 84% do público.

Esse boom no número de buscas pode pavimentar um caminho importante no reconhecimento do potencial da PrEP como ferramenta de saúde sexual e reprodutiva para as mulheres. É preciso que esse novo comportamento seja observado por mais tempo e mais de perto para que se trace, com precisão, o que as levou a recorrer à profilaxia medicamentosa. No entanto, é possível trabalhar com hipóteses que vão desde a expansão da conversa sobre emancipação sexual até uma conscientização maior sobre a necessidade de incluir a prevenção às ISTs no período pós-pandêmico – já que a crise sanitária conscientizou mais a população sobre as vulnerabilidades epidemiológicas.

No cerne deste contexto está a emancipação feminina e a mediação dos relacionamentos por meio da tecnologia. É o que reflete a psicóloga e educadora em sexualidade Ana Canosa, que cita como exemplos a maior suscetibilidade das mulheres no uso de apps de relacionamento e ao sexo casual, a quebra de paradigmas em relação ao casamento e amor romântico, o foco na carreira e a idade mais tardia para relações de compromisso.

A sexóloga Camila Gentile também cita a maneira como a sociedade de modo geral tem repensado os modelos de relacionamento. Ela define a era que vivemos como as dos “multicasais” – relações abertas ou poligâmicas. “Nesses casos, cabe o uso da PrEP”, diz. O mesmo vale para as que se interessam por práticas sexuais consideradas mais “liberais”. É o caso de mulheres como Mari, que passam a se aventurar no swing ou em ménages. “Essas práticas tornam as mulheres mais conscientes de que devem se responsabilizar, de que não dá para ficar esperando o movimento vir do outro”, diz Canosa.

O aumento também significa um otimismo sobre a disseminação de informações sobre PrEP, principalmente por meio de ONGs e redes sociais. “Nota-se que essas mulheres tiveram acesso à informação para chegar no serviço de saúde com essa demanda, o que é maravilhoso”, celebra Marta McBritton, presidente do Instituto Cultural Barong, que pauta sexualidade sem tabu em centros itinerantes desde 1995. “Dessa maneira, elas podem exercer uma sexualidade tranquila que lhes garante o direito de eleger o melhor método.”

Em agosto do ano passado, um marco legal pode ter ajudado a divulgar melhor o uso às mulheres. Trata-se da publicação da Portaria nº 90 da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE), do MS, que alterou Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), que envolve a maneira como a PrEP é distribuída. “Com esse protocolo, não há mais população específica para a PrEP. Então, espera-se que mais mulheres a procurem a partir desse ano”, explica Krüger. “Agora, qualquer pessoa com mais de 15 anos sexualmente ativa que se considere, junto aos profissionais de saúde, em situação de vulnerabilidade ao HIV, independentemente de identidade de gênero ou orientação sexual, pode ter acesso.”

Quais mulheres cis usam PrEP no Brasil?

Marta McBritton, presidente do Instituto cultural Barong: 'O mantra meu corpo, minhas regras só funciona em um gueto privilegiado' — Foto: Catarina Bessell

As mulheres cis brancas representam 45% das mulheres que decidiram iniciar PrEP no Brasil em 2022, seguida das pardas (41%). Quem recorre ao método são as mais escolarizadas, que concluíram o Ensino Médio ou o Ensino Superior, entre 30 e 39 anos. A faixa etária dessas mulheres também pode entregar os pontos das motivações que as levam a iniciar o uso.

Ana Canosa aponta que mulheres dessa faixa etária têm mais autonomia e são mais seguras. Por morarem sozinhas, fazem mais sexo do que as de 20; por outro lado, as na casa dos 40 podem estar mais focadas na maternidade ou em relações de compromisso. “Os 30 são uma fase de potência, inclusive sexual. Assim, é possível que haja maior conscientização da necessidade de prevenção”, analisa. O fator emancipação feminina também fala mais alto, já que conduz a outras liberdades, como as emocionais e de autogestão.

Outra hipótese é de que essas mulheres são as que mais receberam informações sobre o HIV, já que foram escolarizadas nos anos 1990, ainda em meio ao ápice da pandemia de aids. Canosa afirma que as escolas estavam mais abertas a discutir o tema – algo que foi descontinuado para as gerações mais jovens. “Me formei em educação sexual em 1996 e lembro que havia uma abertura nas escolas para o tema. Também escutaram muito o ‘use camisinha’”, afirma.

Por mais que as hipóteses indiquem para um cenário animador, é ingênuo pensar que todas as brasileiras estão livres das tutelas impostas sobre seus corpos. A disponibilidade é mais ampla nos grandes centros do Brasil. A maioria das mulheres que usam PrEP estão no Sudeste – 40% delas no estado de São Paulo.

“O mantra ‘meu corpo, minhas regras’ só funciona em um gueto privilegiado. O Brasil real é o das mulheres julgadas, que não têm a possibilidade de acessar ou discutir sobre esses métodos”, diz Marta McBritton. Ao viajar o Brasil como ativista, ela diz que, em cidades interioranas, o julgamento sobre o que as mulheres fazem com seus corpos é constante. Muitas sequer conseguem ter abertura com seus médicos para iniciar a PrEP. Mesmo com o sigilo médico, a informação se espalha.

Há ainda pouca preparação de profissionais de saúde que lidam com mulheres para conseguir ofertar ou acatar o desejo delas de utilizar a PrEP. Foi o caso da agente de atendimento Elvira*, 36 anos, que conheceu e se interessou pela PrEP ano passado por meio de uma palestra na empresa onde trabalha. “Sou solteira e não tenho um comprometimento com uma pessoa. Achei legal porque, com o remédio, se esquecer a camisinha ou estourar, ficaria mais despreocupada”, conta. Mas, ao procurar um centro especializado na Zona Leste de São Paulo, a ginecologista que a atendeu usou a diretriz antiga, indicando que ela não faz parte das populações-chave. “Disse: ‘Você não precisa tomar, é só se prevenir’.” Era justamente o que Elvira tentava fazer.

A médica tentou ainda desencorajar Elvira ao abordar efeitos colaterais como enjoos, dores de cabeça e desconfortos gastrointestinais. Mas Alícia Krüger reforça que esses são efeitos comuns de adaptação que podem ser sentidos no uso crônico de qualquer medicamento. “Eles tendem a sumir depois de 1 semana, no máximo, 1 mês”, diz, reforçando que podem ser amenizados junto ao profissional de saúde por meio de alimentação, hábitos ou medicamentos.

Combate ao machismo também previne HIV

Prevenção ao HIV não depende só de PrEP, e depende de proteção a vida de todas as mulheres e enfrentamento a preconceitos e violências — Foto: Catarina Bessell

Segundo o Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), a desigualdade de gênero está entre os entraves para a erradicação do HIV. Enquanto os homens são desencorajados a buscar o serviço de saúde, o cuidado sexual se torna uma preocupação totalmente voltada às mulheres. “Temos uma cultura machista em que somos socializadas a nos cuidar mais e a nos prevenir melhor. Muitas vezes, todo cuidado em saúde sexual acaba caindo para a mulher – exemplo disso é o próprio anticoncepcional”, diz Krüger.

Mulheres, cis ou trans, em contexto de violência têm 50% mais chances de contágio, e mais de 80% dos casos de cis positivas para HIV foram infectadas pelo parceiro – não são raras as que devotam suas fidelidades aos maridos e descobrem que têm HIV, decorrente de relações extraconjugais não protegidas deles. O Unaids aponta ainda que das casadas entre 15 e 24 anos, só 41% tinham autonomia para tomar decisões sobre a própria saúde sexual. “Se pensarmos no comportamento social de gênero, as mulheres ainda são vulneráveis. Há maior consciência dessa vulnerabilidade feminina diante do sexo, até na dificuldade em negar sexo quando um homem, por exemplo, se nega a usar preservativo”, diz Canosa.

Camila Gentile diz que, sem conseguir romper esse vínculo e coagidas a buscar ajuda profissional, muitas fazem o uso da PrEP escondidas dos maridos. A estrategista de projetos sociais Sônia*, 52 anos, teve acesso à profilaxia porque sabe que o companheiro tem relações com outras pessoas. “Sou uma pessoa aberta. Já tentei conversar sobre abrir o casamento, mas ele não consegue falar disso, sempre nega. Só que ele já trouxe infecção para casa”, relata.

Sônia acessou a PrEP e contou para o marido na esperança de que ele se interessasse. Não foi o que aconteceu: ele se sentiu pressionado e disse que ela é quem estava se relacionando com outras pessoas. “Ouvia dele: ‘Por que você tá tomando? Não precisa, não tenho nada com ninguém, não faz sentido’. Tive alguns efeitos colaterais de adaptação, mas acabei vencida pelo cansaço por ele. Desisti.”

Sônia diz que se sentiria mais confortável fazendo uso da PrEP injetável, já que a aplicação seria de dois em dois meses. “Poderia simplesmente ir ao consultório e tomar sem ele saber.” Com a aprovação da Anvisa, Sônia pode estar perto de finalmente ter esse direito garantido.

Ter uma tecnologia padrão ouro disponível, como Krüger define a PrEP, não adianta se as populações que mais precisam dela não podem acessá-la. Para isso, é necessário que o enfrentamento à misoginia, lesbofobia, bifobia, transfobia, classismo e racismo constem também como métodos preventivos, já que HIV se previne com métodos biomédicos, comportamentais e estruturais. “Se tem violência masculina envolvida, essa mulher não consegue usar a PrEP. Portanto, é preciso que tenhamos marcos legais que as amparem. Falar sobre as leis que protegem a vida de todas as mulheres também é falar sobre prevenção ao HIV.”

* Os nomes foram omitidos a pedido das personagens

Fonte: Marie Claire