No final dos anos 80, no auge da epidemia do HIV no mundo, a Assembleia Geral da ONU e a Organização Mundial de Saúde instituíram o dia 1º de dezembro como o Dia Mundial de Luta contra a Aids. O Brasil, assim como muito países, aderiu à data.
A doença foi descoberta nos anos 80 e até o inicio dos anos 90 matou mais de 30 mil pessoas no mundo. Conforme o vírus foi se espalhando, os noticiários da época, que ainda não sabiam exatamente do que se tratava, reforçavam estereótipos sobre a doença. O caso mais conhecido foi a capa da revista Veja, divulgada em abril de 1989, que trazia a imagem de Cazuza, o vocalista da banda Barão Vermelho. Na chamada se dizia: “Cazuza, vítima da Aids que agoniza em praça pública”, exaltando os sintomas físicos da doença como magreza e palidez.
A capa retrata como eram vistas as pessoas que possuíam o vírus nos anos 80/90. Por ser transmitido, na maioria dos casos, por relação sexual, a igreja aproveitou do momento para utilizar a epidemia como justificativa de uma “punição divina”. Drauzio Varella concedeu uma entrevista ao filme Carta Além dos Muros, que trata da doença, e classificou a atitude da Igreja Católica como “criminosa”.
Nos anos 80, o HIV e a Aids não tinham cura. A recuperação total ainda não existe, mas as pesquisas sobre a doença evoluíram e tratamentos com eficiência foram criados. No início da epidemia, uma pessoa com HIV tomava, em média, 18 medicamentos por dia. Hoje esse número chega a dois.
A ciência também conseguiu mecanismos para medir o nível de carga viral de uma pessoa que vive com HIV. Ele pode ser diminuído pelo uso dos medicamentos e, se chegar a um ponto indetectável, o vírus não é mais transmitido para outra pessoa.
Outras formas de prevenção foram descobertas. A profilaxia pré e pós-exposição (Prep e Pep) se tornaram maneiras de barrar o vírus. A Prep é um remédio tomado diariamente que bloqueia a entrada do vírus e a Pep é para quem teve contato com o vírus e consegue “matá-lo” em até 72 horas após a exposição tomando o remédio no período de um mês. No Brasil, todos esses tratamentos estão disponíveis gratuitamente no SUS.
Apesar das mudanças, o preconceito contra pessoas soropositivas continua. A imagem do Cazuza magro na capa da Veja ainda domina o imaginário popular sobre pessoas que vivem com o HIV e o medo da morte associado à doença segue utilizado como forma de prevenção, o que só aumento o preconceito.
Como as pessoas com HIV vivem hoje?
Lucas Raniel tem 27 anos e há seis vive com o vírus. Ele se tornou uma referência na divulgação de informação sobre como é viver com HIV e métodos de prevenção da infecção. Publicitário, ele mora no centro da capital paulista, utiliza seu Instagram e seu canal no Youtube (“Falo Memo”) para produzir conteúdo sobre o tema.
A trajetória de Lucas na divulgação de informação sobre o vírus começou em 2013, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Na época, ele, com 20 anos, cursava Publicidade e Propaganda e passou por um episódio de abuso sexual. Saiu de uma festa alcoolizado e foi se encontrar com um rapaz que conheceu por um aplicativo de relacionamento. Chegou ao local e não se lembra de mais nada. “Apaguei lá. Foi chocante”, relembra.
Alguns meses após o episódio, Lucas começou a sentir sintomas diferentes, como feridas e emagrecimento. Essas alterações levaram-no a procurar um posto de saúde e se testar. Quando o resultado positivo saiu, ele conta que viu o mundo desabar. “Achei que iria morrer. Na época, não tinha informação nenhuma. Achei que nunca mais iria me relacionar com ninguém”, conta Lucas.
Lucas chegou a sofrer agressão física após contar para um rapaz, com o qual ele teve relação, que era soropositivo. “Depois desses episódios, voltei para casa da minha mãe, em Guarapé, pois estava depressivo. Me cuidei e voltei para Ribeirão muito mais forte”, conta.
Em 2017, depois de se informar e se aceitar, o jovem resolveu sair do armário e publicou um texto em seu Facebook assumindo a doença. Era a largada para virar um influenciador digital.
Centenas de pessoas procuram o youtuber para tirar dúvidas e pedir conselhos. “Há uma deficiência sobre informação. Se o Estado realizasse aula de educação sexual nas escolas, nada disso teria acontecido. Se eu soubesse da Pep, teria tomado e não estaria infectado. Negligência do Estado nesse contexto. Acabei abraçando essa causa.”
E como fica a rotina com o HIV? “É muito tranquilo. Sou muito mais saudável do que era há seis anos. Uma medicação deixa minha carga negativada. Sei tudo o que acontece na minha saúde, no meu corpo”, explica.
A transmissão vertical
A artista plástica Micaela Cyrino tem 31 anos e durante toda a sua vida viveu com o HIV. A paulistana contraiu o vírus de forma vertical, quando a mãe passa para o filho durante a gestação.
Esse cenário mudou. Se uma pessoa grávida seguir todas as recomendações médicas, a possibilidade de infecção do bebê reduz para níveis menores que 1%. Curitiba foi a primeira cidade brasileira a eliminar a transmissão vertical, no ano de 2017, mostrando que é uma realidade possível.
Na época em que Micaela nasceu a história era diferente. Nos anos 80, início da epidemia, o tratamento do HIV ainda era algo distante e a morte era quase que inevitável. Os pais dela morreram quando tinha apenas seis anos e Micaela foi enviada para um abrigo de crianças soropositivas.
Lá teve uma vida “bem vivida” e iniciou seu processo de militância sobre o tema. No abrigo, segundo Micaela, eram feitos encontros semanais com espaço para as crianças. “Isso formou meu caráter e me fez crescer”, diz.
Micaela chegou a realizar o tratamento com 18 medicamentos diários. Ela lembra que, na época, sentia dores no estômago, tinha vômitos constantes e muito mal estar. A partir de 2015, a artista conta que houve uma melhora no tratamento oferecido. Hoje consegue manter uma vida sem implicações.
Toma dois medicamentos por dia e comparece ao médico duas vezes ao ano, o que é recomendado para quem já conseguiu tornar a carga viral indetectável.
Quanto ao preconceito. Micaela enxerga uma melhora desde o início da epidemia. “Existe um preconceito um pouco diferente do início da epidemia, mas eu sou uma mulher negra, então comparando ao racismo, que é estrutural e cotidiano, acredito que violência é maior que a sorofobia”. Segundo dados do Ministério da Saúde, aproximadamente 60% das pessoas que possuem HIV no Brasil se declaram pardos ou negros.
Micaela faz parte do Coletivo Amem que atua na luta pela garantia de direitos da população negra a partir do reconhecimento da diversidade. O coletivo inclui, também, a pauta sobre o HIV. “Eu sempre vou ter algo pelo que lutar.”
A luta contra o preconceito transformada em arte
O diretor de arte Vinícius Couto tem 31 anos e há três vive com o vírus do HIV. Quando o paulistano ainda morava no Rio de Janeiro, em 2016, realizou um teste de rotina e se descobriu soropositivo. “Foi um baque, um silêncio absurdo. Fiquei na cama jogado e esqueci tudo que tinha aprendido. A gente sente nojo do corpo, se sente perverso, promíscuo. Reproduz tudo que é estruturalmente aprendido”, conta.
Vinícius voltou para São Paulo, onde mora sua família, e deu início ao tratamento. Durante dois anos, ficou se cuidando sem contar para ninguém sobre sua condição, até que chegou um momento que ele sentiu a necessidade de se assumir.
“Não conseguiria viver mais em silêncio. O silêncio é uma ferramenta do conservadorismo de muita coisa. O que eu vejo hoje é que as pessoas são presas nos anos 80, na capa da Veja do Cazuza. Precisamos de novas representações. O silenciamento é uma das coisas que mais gera tristeza, solidão e isso faz com que as pessoas morram aos poucos”, diz.
Vinícius passou a realizar performances artísticas falando sobre o tema. A primeira aconteceu no Egito, local onde pessoas com HIV são proibidas de entrar. “Acharam o remédio e não entenderam que era de HIV.”
Ele já realizou algumas apresentações em São Paulo, incluindo no dia 1º de dezembro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Agora seguirá para outras cidades do País. A próxima performance acontece no dia 14 de dezembro, no Rio de Janeiro. “Precisamos humanizar o tema. Todo mundo tem algum caso de pessoa próxima, mas não sabe, porque não se fala.”
Fonte: Carta Capital