Quem já esteve no CRT (Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids), em São Paulo, deve ter se deparado com o grande fluxo de pessoas que circulam no prédio da Rua Santa Cruz. Tem gente que vai ao local em busca de testes de HIV, outros querem preservativos, centenas de pessoas vão em busca de assistência e medicamentos. Tem ainda os que querem ter acesso as profilaxias pré e pós-exposição sexual do HIV e os usuários de pesquisas, fora os profissionais de saúde. Ou seja, é muita gente neste espaço. Mas como o serviço se adaptou para continuar trabalhando em tempos de pandemia da covid-19 e receber o maior número de pessoas? Algum trabalho foi interrompido? Essas e outras perguntas foram respondidas na live: “CRT-DST/Aids e suas ações em tempos de isolamento social”, da Agência Aids. A jornalista Roseli Tardelli conversou por mais de uma hora com parte da diretoria do CRT sobre os desafios e aprendizados durante a pandemia.

Há mais de 30 anos, o CRT presta assistência médico-hospitalar, ambulatorial e domiciliar a pacientes com ISTs/aids. Além de coordenar o Programa Estadual de DST/Aids, o CRT é responsável por elaborar e implantar normas relativas às ISTs/aids no âmbito do SUS. Com a chegada do novo coronavírus, o CRT passou a enfrentar a pandemia dentro da pandemia, tendo que desenvolver estratégias para continuar atendendo seus pacientes dentro de uma nova realidade: o isolamento social e a ameaça da covid-19.

Roseli perguntou a equipe do CRT como eles chegaram no CRT. A primeira a responder foi a Dra. Maria Clara Gianna, diretora-adjunta do Programa Estadual de DST/Aids. “Entrei no CRT em 1988 como médica sanitarista já na organização do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids. Tinha terminado a residência de medicina social da Santa Casa e o estágio no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, trabalhei bastante na sessão de epidemiologia do Emílio. Acabei me aproximando da equipe que estava organizando o Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids. Logo depois passei a fazer parte da equipe de vigilância, liderada pelo Dr. Paulo Roberto Teixeira, pela Dra. Maria Eugênia Lemos Fernandes, a Dra. Valquíri Pereira Pinto e a médica Rosana Del Bianco. Eram os quatro fundamentais para a organização dos serviços”, relembrou.

A infectologista Rosa Alencar chegou no CRT um ano depois da Maria Clara, em 1989. “Tinha acabado de fazer residência médica no Hospital Heliópolis e tive muito contato com pessoas vivendo com HIV/aids. Ajudei a estruturar em Santo André um serviço de HIV/aids e logo depois fui para o CRT. Comecei como médica, depois fui supervisora de equipe, diretora de serviço, gerente da assistência e agora componho a equipe a diretoria técnica.”

O nutricionista e coordenador do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, Alexandre Gonçalves, chegou um pouco mais tarde, em 1994. “Entrei para fazer atendimento no nosso ambulatório de especialidades, que ficava no sétimo andar. Fui recebido pela Rosa e pela Estela. Era justamente o momento em que o Programa estava no gabinete. O CRT foi o meu primeiro emprego no Estado. Na época, introduzimos o suplemento, tínhamos muitas perdas, mas começamos a procurar ajudar para utilização de suplementos em pacientes. Ajudou muito. Depois fui interagindo com outras situações dentro do CRT e em 2013 assumi a gerência de apoio técnico. Essa gerência cuida da logística de entrega de medicamento no Estado de São Paulo e da rede de laboratórios.”

Mais de 7 mil pacientes no CRT

O CRT, de acordo com a Dra. Maria Clara, é responsável hoje pelo atendimento de mais de 7 mil pacientes vivendo com HIV/aids. “No ambulatório de hepatites acompanhamos 2 mil pacientes mono infectados. No ambulatório integral para travestis e transexuais estamos acompanhando cerca de 1 mil pessoas. Temos também o Centro de Testagem e Aconselhamento, que não parou nenhum momento ao longo da pandemia. Continuamos com a PrEP e a PEP e com o atendimento as infecções sexualmente transmissíveis”, explicou. Completando que o serviço se reorganizou para atender as pessoas da melhor forma possível em tempos de pandemia. “Sou uma Centro de Referência, por isso, o que fomos aprendendo, fomos compartilhando com outros serviços do Estado. Temos sempre que olhar para todas as modalidades assistenciais. Conseguimos manter o contato com toda rede e estamos inovando cada vez mais neste trabalho com os serviços, os municípios e a sociedade civil. Começamos a usar as diferentes plataformas para reuniões virtuais”, disse Dra. Maria Clara.

Assim como Clara, a médica Rosa Alencar considera que o serviço se reinventou, principalmente no que diz respeito a rede de cuidados integral. “Tivemos que nos reinventar, num primeiro momento a rede teve impacto por conta da covid. Fomos reestruturando e nos aproximando das ferramentas virtuais. Hoje, podemos dizer que estamos retomando o nosso trabalho com a interlocução regional, fazendo adaptações para o meio virtual, retomando os grupos técnicos e caminhando para frente neste processo. Descobrimos que é possível reunir várias pessoas virtualmente e conversar sobre questões pertinentes. A gente trabalha enfrentando a sífilis na gestação para prevenir a sífilis congênita, trabalha olhando para todas as etapas do cuidado, desde a promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento, até a supressão viral e a qualidade de vida do paciente. Também estamos tendo a companhia do Programa de Hepatites Virais. É um processo continuo de reinvenção e adaptação.”

Roseli perguntou se a equipe ficou alguns dias sem trabalha e Alexandre respondeu prontamente que o CRT não parou um dia. “A pandemia não tirou a gente do trabalho e  também veio para tirar alguns preconceitos que tínhamos em relação ao trabalho virtual. Principalmente com relação as receitas, atendimento de pessoas, exames. No início tivemos algumas situações problemáticas, mas estamos aprendendo.”

Novos modelos

Clara revelou que uma das situações, por exemplo, é a garantia do atendimento de pacientes que estão em outros países. “Temos alguns usuários de Angola e conseguimos, em parceria com a sociedade civil, que os medicamentos antirretrovirais chegassem até eles. Também fomos encontrando mecanismos para que os medicamentos chegassem para as pessoas que estavam com medo de vir ao CRT por conta da covid. Essa é uma parceria com o Barong, o Grupo Pela Vidda São Paulo e o Movimento das Cidadãs Posithivas. Fizemos tudo com toda ética e o sigilo necessário. A nossa ideia é continuar mantendo este tipo de serviço depois da pandemia”, comemorou.

Os desafios

Outro desafio do CRT em tempos de pandemia foi aumentar sua capacidade de internação e atendimento. “O Emílio Ribas se tornou referência no atendimento de covid, por isso, tivemos que aumentar a nossa capacidade para internar e atender pessoas que não eram do CRT. Entramos nesta rede colaborativa e aumentamos as nossas possibilidades de atendimento.”

O papel da prevenção

A gerente da área de prevenção do Programa Estadual, Ivone de Paula, também participou da live e garantiu que o trabalho não parou. “Cheguei no CRT para ficar três meses em um projeto com a Atenção Básica e estou lá desde 2001. Fui ficando na prevenção, assumou a direção com a atenção básica. Em 2010, assumi a gerência de prevenção. O aprendizado que tive esses anos todos foi para além da aids, foi um aprendizado de vida, de entender melhor o porquê de estar neste momento, as pessoas com quem a gente convive. Isso foi fundamental na minha vida como pessoa.”

Roseli perguntou a Ivone como ficou a prevenção combinada em tempos de covid? “No começo da pandemia tínhamos que falar para as pessoas ficar em casa. Fomos reforçando as medidas de prevenção, fizemos um documento falando da importância do isolamento social, mas sempre reforçando a prevenção. As pessoas continuaram vivendo e fomos trabalhando nesta lógica. Temos a Conversaria sem Tabu no Facebook e no WhatsApp. Teve gente que entrou em contato em busca de informações sobre os locais que estavam ofertando PEP e PrEP. Isso significa que as pessoas continuaram se relacionando e estavam precisando de ajuda. Todos foram orientados, atendemos até pessoas de outros estados.”

O que mais preocupou Ivone foram as profissionais do sexo, que trabalham nas ruas. “Fizemos algumas reuniões com elas e percebemos que haviam profissionais, principalmente as que trabalham em saunas, que conseguiam fazer alguma ação de proteção ligando as ISTs/aids e covid. No entanto, a situação das meninas que trabalham na Luz e Centro era extremamente dramática. Não tinha nenhuma ação que pudesse proteger elas com relação ao covid. Fomos trabalhando de formas diferentes. Não ficamos investigando muito porque queríamos que elas percebessem que não existia julgamento. Algumas até disseram que estavam recebendo cestas básicas, mas precisavam mais do que isso, elas têm uma vida. As ações extramuros ficaram restritas. A gente colaborou muito com os insumos. Fornecemos, por exemplo, preservativos e autotestes de HIV para as ONGs que estavam trabalhando nas ruas, levando alimentos para pessoas. Temos um trabalho no CRT com jovens vivendo com HIV, jovens LGBTs e continuamos este trabalho. Por fim, estamos realizando um ciclo de debates para levar mais informações para os municípios e as ONGs.”

Parceria com a sociedade civil

O diretor do Núcleo de articulação com sociedade civil, Jean Dantas, destacou que na pandemia o CRT continuou trabalhando em parceria com a sociedade civil. “O Barong, por exemplo, trabalhou para viabilizar a entrega de medicamentos para os usuários. Depois chegou o projeto Balaio e eles incluíram também a entrega de cestas básicas e kits de higiene. Trabalhamos ainda com o Voluntariado das Américas, uma ação das Cidadãs Positivas apoiadas pelo Unaids. Fizemos um documento orientador para o trato de pessoas com HIV abrigadas em casas de apoio. E a todo momento estávamos em reunião com o Fórum e outras instituições para dar apoio no acolhimento das pessoas com HIV. A pandemia fez reacender algo que estava esquecido: a solidariedade.”

Sobre sua chegada no CRT, Jean recordou que veio da sociedade civil. “Eu vim do Gapa São Paulo e da RNP+. Eu trabalhava na assistência domiciliar terapêutica em Catanduva, no interior do Estado. Assumi a área de prevenção depois virei coordenador. Em 2008, a Nair Brito estava trabalhando no CRT e me convidou para trabalhar junto. Aceitei o convite e estou até hoje na articulação com a sociedade civil.”

Pesquisa

Conforme a Live ia avançando, mais pessoas representando o CRT participava do bate-papo. Esse foi o casos dos médicos Valdez Madruga e Carmen Domingues. Valdez começou a trabalhar no CRT em 1994, como médico infectologista. “Trabalhava no quinto andar. Em 1995, assumi as pesquisas clinicas. Hoje, temos 10 estudos em andamento e mais três estudos grandes para começar. Estudos sobre vacinas de covid, vacina de HIV, também temos um estudo de vacina da dengue para a população com HIV. Fomos selecionados para o estudo de vacina da Jasen e é bem importante, é o primeiro que vai permitir a entrada de voluntários com HIV/aids. Essa população não pode ficar de fora das pesquisas. Estamos na torcida pela vacina. Sabemos que este é o canal para o controle da pandemia. Pandemia essa que mudou a forma de viver pelo mundo. Temos que andar de máscara, não podemos mais abraçar, beijar, apertar as mãos. A covid é uma doença bastante grave, estamos colocando muita fé na vacina. Muita gente já morreu.”

Os desafios da eliminação da sífilis congênita

Dra. Carmen relembrou que a aids entrou em sua vida em 1987, antes mesmo de trabalhar no CRT. “Estava no Centro de Informação de Saúde e montei a primeira base oficial de dados sobre HIV/aids do Estado. Em 1994, essa parte da vigilância foi para o CRT e eu fiquei trabalhando lá. Sempre trabalhei na vigilância. Sou pediatra e médica sanitarista.  Em 2014, com o falecimento da nossa colega Luiza Matida, que coordenava a transmissão vertical do HIV e da sífilis, acabei assumindo este trabalho.”

Em relação a transmissão vertical do HIV, Carmen contou que há várias cidades do Estado que está em vias de conseguir o certificado de eliminação. “O mais importante foi a Cidade de São Paulo. Estamos com Presidente Prudente se preparando e outros no processo. O nosso maior desafio é a sífilis, a sífilis congênita é inesgotável. Ainda estamos longe de eliminar a transmissão vertical da sífilis. A sífilis é um agravo que para transmissão vertical é 100% evitável. Você tem medicação, diagnóstico… Sempre nos perguntamos o motivo de não conseguirmos eliminar. Sabemos que falta capacitação na rede de saúde, mas precisamos de vontade política. Precisamos investir em ações conjuntas. Com a pandemia, muitas gestantes deixaram de fazer o pré-natal. A boa notícia é que o Estado de São Paulo está com a incidência da sífilis congênita estável e com a redução de números absolutos de casos.”

Dificuldades na pandemia

Roseli perguntou quais são as dificuldades do serviço em tempos de covid. Dra. Maria Clara afirmou que “nos primeiros meses foi bem difícil, tivemos perdas de profissionais de saúde. Nossa assistente social de longa data foi a óbito por conta de covid, um auxiliar de enfermagem também. Neste momento, temos que agradecer a todos os profissionais de saúde do CRT. Estamos aqui representando uma parte deles, contar com essa equipe foi fundamental para tudo. Comecei essa live falando de como temos aprendido com a pandemia, mas tivemos perdas também. Temos alguns colegas nossos que ficaram meses na UTI. Nos mobilizamos bastante. Tivemos um processo grande de companheirismo e solidariedade. Temos no serviço a questão dos EPIs garantidos, isso nunca foi uma dificuldade. Reorganizar os serviços e os fluxos internos para que os nossos pacientes tivessem tranquilidades para estar nos nossos serviços foi um desafio muito grande. Mais uma vez a nossa resposta foi solidária. Contamos com uma grande participação da sociedade civil, profissionais de saúde, universidade. A gente volta a falar do quanto é importante estarmos dentro de um sistema de saúde organizado, um sistema que procura olhar de uma forma integral para tudo isso.”

Falta espaço

Para Valdez, o impacto da pandemia no Brasil não foi tão crítico porque existe o SUS. “Apesar de sucateado, o nosso sistema público ajudou bastante a controlar a pandemia. Não podemos nos esquecer do Hospital das Clinicas, que de uma hora para outra aumentou o número de leitos na UTI. O Emilio Ribas aumentou muito a capacidade de atendimento ao longo da pandemia. Nesta linha, lá no CRT o nosso maior problema é a falta de espaço físico. Temos como crescer, temos vários profissionais bons e comprometidos, temos estudos chegando, mas não temos espaço físico para fazer. Capacidade técnica a gente tem, mas trabalhar com estudos clínicos é muito importante porque a gente consegue dar acesso a tratamentos que só estarão disponíveis na rede pública depois de vários anos. Hoje, temos muitos pacientes que estão vivos porque tiveram a oportunidade de participar de estudos de drogas novas no passado”.

O psicólogo e escritor Salvador Correa, do Rio de Janeiro, acompanhou a live pelo Facebook e perguntou quais são os ensinamentos da experiência da covid-19 para os serviços?

Dra Rosa reforçou que o maior desafio foi estruturar os serviços para continuar cuidando das pessoas com segurança. “A maior parte dos nossos serviços mantiveram o número de atendimentos, se organizaram para fornecer medicamentos por um tempo maior. Lá na coordenação, começamos a elaborar diretrizes em relação a assistência. Não teríamos conseguindo passar por isso sem a contribuição e o empenho de todos os técnicos. Ao mesmo tempo trabalhamos para que os equipamentos de proteção estivessem disponíveis. Foi um aprendizado grande. Tínhamos que dar conta de cuidar também dos nossos trabalhadores, eles estavam com medo.”

Alexandre acrescentou que não dá para tratar de saúde só pensando em Secretaria de Saúde. “Para tratar de uma pandemia como essa você precisa de interlocução com outras esferas. Você precisa se articular com várias áreas, é um trabalho em conjunto. Não dá mais para pensar que educação é só coisa da educação. Hoje em dia não existe mais território. Ver ou não o paciente presencialmente é algo que vai ficar com a pandemia.”

Sobre o aprendizado que a covid está trazendo para cada um, Roseli disse que está aprendendo a ser mais paciente, Dra Maria Clara falou que aprendeu a ser mais solidária. Dra. Carmen contou que a pandemia reforçou muito os laços de amizade. Dr. Valdez afirmou que está aprendendo na pandemia que uma consulta virtual pode ser um ato de solidariedade. Alexandre está aprendendo a matemática da tolerância. Dra. Rosa está apostando cada vez mais na importância do cuidado. Ivone descobriu em tempos de covid que a união faz diferença e fortalece laços. Por fim, Jean contou que aprendeu a trabalhar com a sua ansiedade.

Roseli encerrou a live com uma homenagem a todos os profissionais do CRT representados pelo Dr. Paulo Roberto Teixeira. “Se não fosse o empenho, a dedicação, a generosidade, a inteligência e o compromisso do Dr. Paulo Roberto Teixeira, o CRT e todo trabalho de vocês não seria o que é.”

Quem não viu o bate-papo pode conferir a conversa na integra no Facebook da Agência Aids, temos ainda uma versão editada na TV Agência Aids.

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

 

Dica de entrevista

CRT

Tel.: (11) 5087-9907