Em homenagem ao Dia da Visibilidade Trans, comemorado sempre em 29 de janeiro, a Agência de Notícias da Aids dedicou a live dessa terça-feira (26) a comunidade trans. Com o tema “Visibilidade Trans, questões atuais, avanços e o futuro”, a jornalista Roseli Tardelli conversou, por mais de uma hora, com o artesão Alexandre Peixe, homem trans, e a professora Ariadne Ribeiro, mãe e mulher transexual, sobre os desafios de ser trans no Brasil, cidadania, políticas públicas, saúde, processo de transição de gênero, relação com a família e lutas diárias.

Ariadne, que mora em Brasília e atua como assessora de apoio comunitário para o Unaids no Brasil, disse que tem vivido altos e baixos ao longo da pandemia. “Voltei a trabalhar presencialmente em desde novembro. O Unaids não parou na pandemia, reformulamos nossas atividades e respondemos muito rápido as necessidades das nossas comunidades, principalmente das pessoas LGBT. É claro que tenho meus altos e baixos, mas costumo ser bem otimista, gosto de olhar sempre para o lado positivo das coisas, todas as situações tem um lado positivo, isso me ajuda a manter a resiliência.”

Já Alexandre tem se apoiado na esposa e nos amigos para vencer os desafios impostos pelo distanciamento social. “Sou grupo de risco, tenho asma e problemas cardíacos, por isso tenho ficado a maior parte do tempo em casa. Ainda bem que tenho a Letícia e meus amigos. Essa semana tive sintomas de covid, mas estou bem.”

Os dois, que lutam diariamente pelos direitos humanos de pessoas trans, disseram que há avanços importantes na luta trans no mundo, como, por exemplo, a transexualidade não ser mais considerada transtorno mental. Mas que é preciso avançar muito mais.

Dados da Antra

Um levantamento divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) mostrou que mesmo com a entrada da pandemia da covid-19, o desrespeito à população Trans não só persistiu, como aumentou. Os dados relativos a 2020 comparados com 2019 demonstram que houve um aumento de 47% no número de assassinatos de pessoas trans no período entre 1 de janeiro e 31 de outubro de 2020, quando comparado com o mesmo período de 2019. Enquanto em 2020 tivemos 151 casos, em 2019 foram 103 assassinatos no mesmo período. Em 2017 e 2018 tiveram 157 e 139 registros respectivamente’.

Logo no começo da live Roseli pediu boas vibrações a cartunista Laerte Coutinho, que está internada na UTI com covid-19. Em seguida, perguntou ao Xande como ele percebeu que seria mais feliz sendo o Alexandre Peixe dos Santos.

“A minha adolescência foi muito foda, minha filha é fruto de um estupro. Quando consegui mudar meu nome relutei muito, não queria mudar o nome e o gênero por questões políticas. Meu pai se chama Alexandre Peixe, decidi colocar o mesmo nome dele, só acrescentei Júnior. Por falar no meu pai, ele sempre me disse que preferia que eu fosse lésbica. Tenho três irmãos, eles também não aceitam a minha transição, mas respeitam. Por outro lado, tenho uma neta que me chama de vovô e minha filha me chama de pai, é tão gratificante. Chamar Alexandra, com barba e sem peito seria muito bizarro.”

Alexandre conta que seu processo de transição não foi fácil. “Foi em 2004 que descobri a possibilidade de ser um homem trans. Escutei a vida inteira que para ser lésbica eu não precisava ser tão masculino, mas sempre fui do jeito que eu sou hoje, só não tinha barba e bigode. Não foi fácil fazer a transição, mas a partir do dia que eu descobri o que era ser um homem trans, me encontrei. Eu era o Xandão, um homem. Claro que absorvi o lado tóxico do machismo, demorei para aceitar que a minha mulher pode usar a roupa que quiser, sempre que tiver vontade.”

“O que você absorveu de interessante do mundo masculino?”, questionou Roseli. “Nada. Os caras da minha comunidade não deixam as minas saírem com as roupas que elas querem, não deixam elas irem para quebrada. Fico muito triste com isso. As pessoas cobram de mim um machismo que eu não tenho. Eu era muito machista, mas aprendi muito com o movimento feminista a respeitar o outro.”

Mudança necessária

Assim como Alexandre, Ariadne sempre soube que era mulher. “Se a minha transição não acontecesse, minha vida não teria sentido. Comecei a entender que eu não era nada daquilo que o mundo queria que eu fosse muito cedo. Eu era uma criança e já tinha absoluta nitidez de que eu era uma mulher, eu só precisava tentar fazer com que as outras pessoas entendessem isso. Neste processo, passei por diversos abusos, fui abusada sexualmente pelo meu tio. Os abusos começaram quando eu tinha 9 anos.  Sai de casa aos 13 anos por conta de uma relação conturbada com minha mãe. Ela tinha seis filhos para criar e dizia que eu estava errada porque eu tinha escolhido ser mulher. Fiquei 14 anos sem falar com a minha mãe, decidi que só ia voltar a falar quando ela entendesse que eu me chamava Ariadne e que ela não poderia me chamar de qualquer outro nome.”

Ariadne foi morar com a avó e foi justamente nesta mulher que ela se espelhou para ser quem é hoje. “Minha avó morreu de câncer e quando ela se foi eu perdi tudo.  Foi a minha avó que me contou a história da Zezé, uma amiga dela que se casou com um marinheiro, viajou o mundo e quando voltou, chegou com peitos e botas.”

Processo de transição

O tempo passou e Ariadne descobriu que um dos caminhos para a mudança no corpo era através de hormônios, “Comecei a usar hormônios por conta própria. Minha avó estava na menopausa e teve que fazer reposição de hormônios, aí comecei a usar a medicação dela. Eu sabia que aquela medicação ia moldar o meu corpo. Logo ela percebeu e passou a comprar duas caixas do medicamento. A minha avó, antes de morrer, me levou para o Hospital das Clínicas para começar o processo de transição com segurança. Só depois disso ela partiu.”

Para ela, o mais difícil no processo de transição é o mundo compreender que “o que a gente quer é simplesmente viver. O nosso maior problema é a falta de humildade de reconhecer o outro como igual, como detentor de direitos. A nossa maior dificuldade enquanto humanidade é ter a maturidade psicológica suficiente para não querer hierarquizar as pessoas.”

Roseli quis saber o que aconteceu para a mãe de Ariadne respeitar ela como Ariadne. “A gente comete alguns erros na vida, existe a falta de uma escuta qualificada de todas as partes. Eu penso que a minha mãe vem de um conservadorismo, ela foi muito machucada por esse mesmo machismo que a me fez machucar. Ela não sabia que simplesmente o amor poderia ser a porta de entrada para a nossa relação. Quando eu me coloquei a escutar e acolher a minha mãe, uma mágica aconteceu. Essa compreensão me trouxe uma conexão. Tudo se transformou quando eu decidi compreender o lado dela e automaticamente ela pode me conhecer. Minha mãe entendeu que a filha dela sempre esteve ali, ela só não reconhecia. A minha história com a minha mãe é muito linda.”

Questionada sobre o filho, Ariadne se emocionou ao relembrar sua história. “O meu filho é fruto de um relacionamento que eu tive por sete anos. O pai dele era envolvido com drogas, com tráfico, pessoa bem barra pesada, mas com um coração gigantesco. Ele chegou com o menino, pediu para eu cuidar e voltou 30 dias depois. Um mês vivendo e convivendo com o Bruno nasceu um amor infinito. Meu filho é parceiro, é meu amigão.”

Automedicação

Assim como Ariadne, Alexandre também começou a transição de gênero se automedicando. “Conheci uma galera que vendia hormônio, comprei e tomei muito. Isso resultou em 3 AVC e quase tive trombose. Só em 2013, consegui entender a importância de um acompanhamento médico, então comecei a fazer o tratamento correto, com endocrinologista. Há dois anos eu não tomo hormônios. Fiz histerectomia em 2010 e preciso fazer uma reposição hormonal.”

Outra pergunta de Roseli foi sobre o processo de transição. “Está mais fácil hoje?  Tem mais acompanhamento médico?

“Tivemos alguns avanços importantes. Mas a gente ainda continua com um tempo grande até a cirurgia. Temos apenas 50 serviços habilitados no Brasil inteiro. Se a gente usar os dados científicos a respeito da população trans no mundo, somos cerca de 1,2 até 1,7 milhões de pessoas. Como é que a gente absorve isso com esse número pequeno de serviços de saúde? Temos muito que avançar. O STF julgou diversas ações de nos beneficia. A transexualidade deixou de ser considera uma doença. Na minha época a mudança de nome era feita depois de uma perícia, a que eu fiz foi bem violenta.  A gente ainda tem muito o que caminhar.”

Futuro

Questionado sobre o que espera do futuro, Alexandre foi direto: “Estou há 4 anos sem conseguir um emprego, eu espero ser o Alexandre, com oportunidades de trabalho. O que me deixa mais esperançoso é que eu tenho amigos.

Já Ariadne relembrou que o futuro é uma astronave. “É algo que a gente não tem o controle. A nós cabe concentrar todo nosso amor e boa vontade no agora. É semeando que se colhe. Se a gente está fazendo o bem, o bem vem.”

Antes do fim, Roseli anunciou que além desse debate, a Agência Aids vai promover no próximo sábado (30), em homenagem a visibilidade trans, uma Mostra de Arte Trans, com a participação da atriz Renata Carvalho, da cantora Maria Sil e da performance Pepe.

A live está disponível na integra em todos os canais oficiais da Agência Aids nas redes sociais, há uma edição com os melhores momentos na TV Agência Aids. Você também pode ouvir a conversa via podcast.

Redação da Agência de Notícias da Aids

Dicas de entrevista

Ariadne Ribeiro

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Alexandre Peixe

E-mail:  diretoriaibrat@gmail.com