Alguns os chamam de grupo, outros de rede, mas o Coletivo Loka de Efavirenz também pode ser definido como uma grande família de acolhimento e luta política contra a aids e a favor dos direitos humanos. Formado por jovens vivendo e convivendo com HIV/aids, todos acadêmicos, o coletivo nasceu em julho de 2016, na perspectiva de incentivar o debate público sobre questões que envolvem a temática do HIV/aids e para somar na construção das políticas de saúde. Na noite desta terça-feira (11), parte do coletivo participou da LIVE: “Loka de Efavirenz em Destaque na Pandemia”, da Agência Aids. Eles falaram sobre os desafios do isolamento social, sobre o que aprenderam com a pandemia, contaram a história do coletivo e como tem se organizado de forma virtual para continuar pautando os direitos das pessoas vivendo com HIV/aids dentro de uma perspectiva com recortes sociais como raça, gênero, classe social, sexualidade, entre outros. As políticas públicas de saúde direcionadas as pessoas vivendo e convivendo com HIV/aids estão no centro do debate do Loka.

Roseli quis saber da Pisci Bruja o que está sendo mais fácil para ela neste momento de isolamento social. “O mais gosto em casa é ter a companhia da Marcela, do meu gato e dos porquinhos da índia. Também gosto de cozinhar e viver na presença da minha mãe. A relação com ela está bem legal, nos aproximamos muito neste momento ímpar, que estou em transição de gênero. Tem sido importante construir essa nova ‘corpa’ junto com ela. A parte ruim é que ninguém aguenta mais ficar em casa, socorro, como é que eu vou fazer dinheiro dentro de casa? Como e quando fazer dinheiro fora de casa? Essas questões atravessam a gente, inclusive estou pensando em como manter essa casa”, disse.

A psicóloga Marcela Jardim, companheira da Pisci Bruja, contou que está segurando a onda no afeto. “No início foi difícil ficar em casa, fui para o interior para resolver umas coisas com a família. Outro ponto é a insegurança com algumas questões, muitas coisas estão desmanchando, vivo pensando em como manter o aluguel. Enquanto coletivo, a gente tenta se reinventar diariamente, neste momento, por exemplo, estamos apostando nos eventos online. Mas a parte financeira para nós sempre foi uma questão, precisamos ter no mínimo segurança alimentar, pagar aluguel. Antes da pandemia, a gente estava conseguindo estabilizar, é claro que o nosso estabilizar é comprar comida e conseguir pagar o aluguel do mês. Não sabemos como será o futuro próximo, a gente segura no afeto. A parte boa é conseguir estar com as pessoas, mesmo online.”

Para a ativista Carolina Iara, que vive na zona leste de São Paulo, a boa notícia da pandemia é que agora ela é oficialmente Carolina Iara Ramos de Oliveira. “Essa é a coisa boa da quarentena, já estou com a nova certidão de nascimento em mãos. Também tenho pintado mandalas e me dedicado a poesia. Eu já escrevia, tenho dois romances espiritas publicados: “Ninguém foge da vida” e o “Tudo é possível”, da editora Zibia Gasparetto. Tenho mais tranquilidade para fazer tudo isso porque sou servidora pública, no começo da pandemia me afastei do trabalho por licença médica, depois entrei na justiça e consegui o direito de permanecer em casa na companhia da minha família: minha mãe, meu irmão, dois cachorros, um gato e uma calopsita não binária. Tenho um crush, falo bastante com as amigas e agora estou focada na campanha eleitoral, faço parte da bancada feminista do PSOL.”

A militante e estudante Lili Nascimento, que vive no Rio Grande do Norte, disse que tem feito terapia. “Moro sozinha com as minhas gatas e tenho aproveitado para ocupar meu tempo com trabalho. Meu orientador de pesquisa também tem sido quase um terapeuta, me ajudou a focar e avançar com a minha pesquisa. Consegui até organizar melhor os planos de trabalho. Estudo a biomedicalização das crianças vivendo com HIV e quero fazer um paralelo com a oferta de PrEP adolescentes.”

Novo normal

“Roubaram o nosso direito de estar com as pessoas, a gente não pode se encontrar. O que aprendemos quando estamos com a gente mesmo?”, questionou Roseli.

“É um puta acesso estar em casa, muitas das minhas amigas travestis não puderam fazer quarentena, algumas não conseguiram acessar o auxílio emergencial, outras não podiam, por algum motivo, parar de fazer programa. A partir do momento em que fui impedida do mundo externo e fui obrigada a me trancar dentro de casa por medo de uma pandemia que ninguém esperava, que ninguém sabia direito como ela ia se dá, que já levou em pouquíssimo tempo 100 mil pessoas. Dia 2, 3 de março eu já estava quarentenada, comecei a desmarcar compromissos. Tive crise de ansiedade ao ler notícias de como estava se desenvolvendo o coronavírus fora do país, passei no psiquiatra e ele me afastou. Uma vez afastada eu comecei a desmarcar os meus compromissos políticos, tinha até um congresso na época. Alguns me disseram que a quarentena ia demorar e estavam errados, não demorou 10 dias para fechar tudo. Eu tinha uma agenda extensa, não parava em casa, isso quando eu não dormia na casa dos outros, de repente tudo mudou, você não pode sair de casa. Para mim, isso foi algo terrível. A situação me obrigou a mergulhar no meu eu, nas dores, nos traumas, nas felicidades, nas belezas dentro de mim, naquilo que eu gosto, que me acalma, no que eu quero para a minha vida, quais são os meus sonhos, voltei a alimentar os sonhos, a utopia, o afeto. Fui repensando a vida e me perguntava o que eu poderia fazer de dentro de casa para ajudar as pessoas? Consegui fazer muitas coisas, foi um processo de riqueza dentro do caos”, comemorou Carolina Iara.

Diferente de Carolina, que sempre morou com a família, Pisci Bruja aproveitou a pandemia para voltar para casa. “Foi um processo louco, estive muito tempo ausente de casa. No começo deu uma leve acalmada, principalmente porque eu, travesti que sou, não ia precisar circular na rua. A sensação que eu tenho e que muitas de nós quando sai as ruas parece que está indo para guerra a todo momento”, explicou. Pisci também está aproveitando a quarentena para cuidar mais do corpo. “Estou fazendo alongamentos e pensando em outras formas de lidar com todas as coisas que preciso produzir. Também fiquei pensando em como me movimentar de dentro de casa para acolher pessoas que estão piores que a gente. Encontrei a Casa Chama, que movimenta uma rede de apoio para pessoas trans e promove diversas atividades. Tenho feito com eles articulações de saúde, pensando em parcerias com ambulatórios, com alguns médicos ou mesmo trocando ideias com algumas pessoas sobre como está a saúde do nosso corpo, a saúde mental. Isso tem sido muito bom. Eu e a Marcela também fazemos alguns trabalhos com jovens do Heliópolis, por lá o foco é saúde sexual. Ainda encontro tempo para me dedicar ao mestrado, que está em processo de finalização. São várias coisas que eu tenho feito de dentro de casa e que tem me ajudado a ocupar um pouco a mente, inclusive alguns banhos e meditações.”

Marcela descobriu na quarentena que gosta mesmo é de encontrar pessoas. “Demorei para conseguir me articular online, o mais difícil foi perceber o quanto a saudade doí. Aprendi nesta pandemia que eu não estava valorizando tanto o contato com as pessoas. A gente faz isso virtualmente, de várias formas, mas não é igual. Gostava muito de estar junto e ao mesmo tempo valorizava pouco, isso foi o que mais me pegou, uma facada no peito. Estou aprendendo a ser menos frio neste momento.”

Lili vem de um processo diferente das meninas. “Mesmo antes da quarentena eu já morava sozinha. Essa rotina de falar pela internet e ficar muito em casa já fazia parte do meu dia a dia. Com a quarentena eu precisei aprender a lidar com a carga de notícias que chega, minha família e as minhas amigas estão em São Paulo. Era uma preocupação constante se estão se cuidando, se estão de quarentena. Tenho sorte de fazer parte de um tronco religioso que trabalha com a questão do silêncio, do contato comigo, de se reservar. Tentei não acumular nada a mais do que eu fazia, não entrei em outro trabalho. Eu moro em um lugar bem privilegiado, que ainda não foi destruído pela civilização. Aqui eu consigo estar em contato com a mata, os rios e ficar mais suave.”

Para Carolina Iara, a religiosidade também é um diferencial em tempos de pandemia. “O fato de eu ser candomblecista, filha de Osanyin, orixá das ervas e das folhas, e ter contato com a mãe de santo me faz muito bem.”

Como surgiu o coletivo?

Para cada integrante do Loka, o Coletivo surgiu de uma forma em suas vidas. Carolina Iara recordou, por exemplo, que o grupo surgiu a partir da divergência de ideias entre jovens vivendo com HIV/aids. “Eu, Aline e Renan fazíamos parte da Rede de Jovens São Paulo Positivo. Em 2016, em parceria com outras instituições da sociedade civil e o Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, realizamos um curso de participação juvenil e ativismo em direitos humanos. Recrutamos 70 jovens do Estado de São Paulo. Dentro do curso existia uma oposição de ideias sobre como a gente deveria conduzir a agenda do movimento social de jovens. Tinham pessoas moderadas e nós, que somos completamente radicais. Nossa critica era ao desmantelamento do SUS. 2016 foi o ano que estava se desdobrando o impeachment da Dilma, o golpe, e o desmantelamento por tabela do Departamento de Aids. Por causa disso, a gente, com ideias semelhantes, acabamos nos juntando. Alguns já eram amigos, estudavam na USP, e outras foram se agregando. Assim fomos formando o Coletivo Loka de Efavirenz. A gente também fala que a Loka foi uma técnica quilombola de sobrevivência, todo mundo fudido, mal pago, estudante, que se ajudava. Escrevíamos juntas os textões de facebook, o ciber ativismo acabou virando ativismo no mundo real. Começamos no mundo virtual, fomos para o real e agora voltamos para o virtual.”

O coletivo Loka surgiu na vida da Pisci a partir do momento em ela conheceu ‘as gatas’ no curso. “Lembro que eu e a Rafa Kennedy, do atelie TransModas, estávamos pensando em começar a fazer um trampo online de aids. Fizemos em Campinas uma performance de lançamento de produção de vídeos da Loka, fomos até para a Unicamp. Começamos a construir uma rede para nos fortalecer, para comer e morar. Por muitas vezes a gente fazia xepa no Ceasa e nos juntávamos para produzir conhecimento coletivo. Conseguimos construir uma rede de afeto potente.”

Hoje, 15 pessoas integram o núcleo central do Coletivo Loka de Efavirenz, mas o grupo conta com agregados em diferentes regiões do país.

Contribuição em tempos de pandemia

Roseli perguntou a Lili qual é a contribuição que a Loka tem trazido para reflexão na pandemia. “Não dá para pensar a Loka muito descolada de todo resto. Houve um momento em que a rede de jovens tentou se desvincular da politização e de pautas que são extremamente caras para nós pessoas vivendo com HIV. Por coincidência ou sorte, também somos acadêmicas. A Loka não tinha o intuito de ser um coletivo, a gente queria ser um grupo de estudos e entender como era a produção e a distribuição de medicamentos, como era essa cadeia até o remédio chegar na nossa casa. A nossa contribuição foi conseguir ser a Loka, foi sair da rede de jovens e ainda sim estar em diálogo com o movimento de aids, o fato de a gente não ser institucionalizada nos permite que tenhamos mais flexibilidade para colocar as nossas críticas. No entanto, cada um de nós está dentro de uma instituição acadêmica, com uma linha de reflexão.

Interlocução

Sobre interlocução e interação de pautas, Lili explicou que o fato do grupo não ser institucionalizado ou vinculado a alguma rede, os ajuda a fazer críticas mais contundentes. A gente estava em um momento muito difícil da vida, com fome, sem lugar para morar, não tínhamos como tomar remédios porque não tínhamos o que comer. É muito difícil ouvir de uma galera que está tudo ok, que é só tomar remédio. Boa parte do nosso amadurecimento enquanto coletivo se deu a partir da nossa reorganização e estabilização. Agora, alimentadas e tranquilas, a gente consegue organizar melhor o pensamento. Sem comida, sem casa, sem paz e tranquilidade a gente não consegue se articular para nada. Foi muito difícil para alguns setores do movimento de aids entender que a gente não vinha de uma classe social tranquila, que podia florear as coisas. A Loka faz o exercício de entender que é uma linha muito tênue entre dramatizar, levar tudo para morte e romantizar. Discutir as vivências de aids com as dores e as feridas que ela tem não é tranquilo, é uma condição crônica, com vários atravessamentos de gênero, raça, condição social que não pode ser deixado para traz. Isso não é exclusividade da Loka. A ABIA e o GIV fazem isso desde os anos 1980.”

Carolina completou: “Não estamos inventando a roda, como candomblecista acho que tudo é uma continuidade daquilo que já se iniciou antes de nós, da nossa ancestralidade. Chamar a gente de radical é fácil, mas não me lembro de ter jogado frasco com pedaços do nosso corpo na mesa de ninguém. O Dr. Esper Kallás sempre conta que nos anos 1990 o ativista Beto Volpe foi em seu consultório e jogou um frasco com um pedaço da bacia dele em sua mesa, era um efeito causado pelo uso do AZT. Sempre existiu em todos os movimentos sociais as alas mais moderadas e as mais radicais. É necessário que seja assim. O que aconteceu em determinado momento do movimento de aids, principalmente na nova geração, e aí eu me incluo, é que a gente achou estávamos descolados da política geral, descolados dos movimentos sociais políticos do país. Só que não, tudo que acontece vai reverbera na política de aids, as coisas estão ligadas. Pensamos que estávamos em uma ilha, a Ilha aids, prima rica da saúde pública, e que o advocacy ia resolver. Vimos que não.”

Roseli perguntou qual é a crítica do Coletivo neste momento de Brasil, de mundo, de pandemia, de descobertas, de isolamento, de vida complicada, de vida que se reorganiza…

“A forma como a Loka tem feito as discussões é para colocar em evidência os problemas estruturais e institucionais, reivindicar direitos e reclamar do processo de avanço de mercantilização da saúde. Temos que nos atentar ao que temos construído como sociedade. Tem muita gente abrindo caminhos e possibilidades. Sempre lembro da Brenda Lee e de outros nomes que nos mostraram outras possibilidades diante desta política de morte. Temos que ficar atentas e articuladas para barrar o avanço da violência que atinge a gente”, concluiu Pisci.

Lili acredita que o momento é de repensar o que já está posto. “Não cabe mais sermos individualistas e achar que se o meu conforto, o meu bem-estar, o meu remédio e a minha saúde estão ok, então está tudo ok. A gente não vive sozinho. Uma das coisas que a quarentena e a covid trouxe de mais latente é o quanto a gente é sociedade, temos que construir soluções coletivas, se os problemas são coletivos, as estratégias também devem ser. A história traz bastantes exemplos, temos que sair dessa dicotomia e achar que tudo é esquerda ou direita, temos que romper com a lógica binária e conseguir pensar outras possibilidades de performances, corpos e existência. Na Loka, a gente tem discutido a possibilidade de resgatar o nosso corpo político também como cura. O quanto a nossa existência e ocupação nos espaços também produz cura.”

Carolina acredita que é preciso começar a pensar em saídas, não ficar só na masturbação da desgraça. “Pensar em utopias é muito importante. A Loka é formada por uma pluralidade, de escolas de pensamentos e ideias, não temos um pensamento uniforme. Eu venho de um tronco de um pensamento socialista, comunista e é isso que eu advogo, de esquerda. Penso que se a gente ficar só remoendo a desgraça não vamos sair do lugar. Temos que mobilizar o direito ao sonho, a utopia, a querer coisas boas, boas energias, bons caminhos. Temos sim que trabalhar por esse luto de 100 mil pessoas, não dá para dar rolezinho e achar que está tudo bem. Vejo isso com um escape, um sintoma de uma população brasileira, principalmente negra, indígena, tradicional ou racializada, estamos há quatro meses sem ministro da saúde, não temos subsidio estatal suficiente para fazer isolamento social, a gente está dentro de um genocídio. Como a gente cria formas de não morrer? Vale lembrar que temos uma agenda específica da aids, que é garantir que o Departamento de Aids siga funcionando. ”

Roseli finalizou a live dizendo que temos grandes desafios, como se manter unidos, solidários e com esperança nesta pandemia. Ela pediu para os convidados resumir o debate em uma palavra. Aline disse cura, Pisci Bruja optou pela desintoxicação, Marcelo, solidariedade e Carolina, utopia.

A live está disponível na página oficial da Agência no Facebook. Há uma versão reduzida na TV Agência Aids.

 

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

 

Dica de entrevista

 

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